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A Alegria Intacta

Nuno Miguel Guedes no Hoje Macau (31 Março 2021)

«Assim estou, amigos, e faço o diagnóstico convosco ao mesmo tempo que as palavras me surgem. Ganho tempo a procurar as causas deste sentimento que me assola. É provável que a antecipação da Páscoa – momento que como crente muito me diz – tenha a ver com esta discreta euforia. Terá, não duvido. Mas suspeito que há mais e olho para o retrovisor para ainda ver os dias que passei a trabalhar com amigos – um deles meu companheiro de infância e de carteira. Poder trabalhar com quem se gosta a fazer o que se gosta é um privilégio que pude escolher há muito tempo. Nem sempre é fácil porque implica momentos em que pura e simplesmente não existe essa possibilidade e que naturalmente se vai reflectir nas condições de subsistência material. Mas, amigos, não há preço para poder exercer cumplicidades. Nenhum sacrifício irá fazer esquecer o prazer de dar e receber na companhia de quem estimamos. E aqui chegado descubro que muita desta alegria – os esotéricos de serviço dirão “energia” mas por favor fiquem calados – provém também desta gratidão imensa e sempre inesperada que advém de poder trabalhar com amigos e saber que irei continuar a fazê-lo.
Admito sem problemas a minha incapacidade de descrever o que estou a tentar partilhar. Felizmente sempre houve e haverá quem possua palavras-espelhos e é sem surpresa que o meu cérebro remissivo me entrega de imediato esta maravilha do grande cronista e meu mestre Antônio Maria, que antes do seu precoce desaparecimento aos 43 anos teve tempo ainda de dizer o que é esta “alegria intacta”. Fala, Antônio: «A alegria de que eu falo não deve ser confundida com o prazer formal, o prazer-palavra, com que se aceitam os convites. É alegria intata, de alma e corpo, dessa alegria que faz as pessoas se sentirem leves, intemeratas e bonitas. Uma alegria que substitui o almoço, o jantar e o banho. Que faz esquecer o Passado, todos os passados, a ponto do paciente se perguntar: “Quanto tempo faz que houve ontem?”». Coisa bonita, não disse?»

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