Publicado em

A bula, essa arte esquecida

Nuno Miguel Guedes, no Hoje Macau (14 Abril 2021)

«Com o decorrer dos anos este passatempo da minha juvenília foi sendo relegado à sua dimensão puramente utilitária e informativa. Mas eis que o destino ou o que quiserem fez questão de me devolver o prazer que pensava já haver perdido. Explico: por questões pessoais tive de me informar sobre um medicamento nesta altura bastante comum no tratamento de crianças e adultos com Perturbação de Hiperactividade com Défice de Atenção. Sabia, através de conversas com médicos e amigos, que era um medicamento com muitas contraindicações, pelo que deveria estar atento. Fui ler. De facto, a bula oferece várias páginas de perturbações associadas à má posologia ou a uma série de condições patológicas crónicas que são adversas a quem é receitado. Li então com a atenção necessária, mas, amigos, entre todos os conselhos e indicações havia um para o qual não estava preparado. Cito, no capítulo dedicado à sobredosagem: “Os sinais de sobredosagem podem incluir sentir-se doente, agitado, tremores (…) sensação de extrema felicidade (…)” Como? Desculpe? A “sensação de extrema felicidade” é prejudicial à saúde?
Quem escreveu esta bula, o doutor Schopenhauer? Eu próprio? Que maravilha, amigos. Apetecia-me falar com o espírito de Cioran, o Pirro dos pessimistas, só para ouvi-lo dizer que não pode haver excesso de uma coisa que nunca existirá.»

Share