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José Luiz Tavares em entrevista

São os nossos próprios governantes os primeiros a rebaixar a língua cabo-verdiana, criando uma falsa hierarquia num sistema axiológico dicotómico

«Politicamente, vivemos numa espécie de esquizoglossia, isto é, esquizofrenia linguística. Senão vejamos: o mpd, partido que mais terá feito pelo avanço institucional da língua cabo-verdiana, nos seus dois primeiros governos, no início do multipartidarismo em cabo verde, quando passou à oposição bloqueou todas as iniciativas nesse sentido. E quando regressou ao poder praticou, através da ministra de educação de má memória, esse acto de quase glotocídio, que foi a eliminação pura e simples do já citado programa experimental de ensino bilingue, que tão bons frutos dera em portugal, em turmas compostas por alunos de múltiplas proveniências linguísticas, e vinha dando em cabo verde, insofismavelmente.

O paicv, partido que, supostamente, por razões ideológicas, seria mais favorável à oficialização, sempre que esta questão se coloca, é do seu interior que emergem as principais forças de bloqueio, conotadas com certos sectores geograficamente muito bem localizados, sendo um dos seus principais arautos um antigo ministro do regime do partido único, mas não se pasmem, sempre no mesmo jornal afecto à força política contrária, que também não se coíbe de dar voz aos portugueses que acham que ainda mandam em cabo verde, como certa vez um certo senhor Morais Sarmento (quais são os seus pergaminhos em matéria linguística? O que sabe ele da situação linguística particular de cabo verde?) e, mais recentemente, uma historiadora (cujo nome não me recordo agora) que disse coisas gravosas e sem qualquer correspondência com a verdade e, ainda que fossem verdade, em cabo verde deveriam mandar os cabo-verdianos. Não me consta que os cabo-verdianos vão a portugal opinar sobre a política linguística do estado português e onde a língua se encontra num estado bastante lastimável. Será a língua cabo-verdiana a culpada disso? Sobre o jornal ou jornalista que se presta a ser veículo dessas interferências externas, por cumplicidade, omissão ou simples incapacidade de rebater, está tudo dito. A dignidade não tem preço.

Aliás, são os nossos próprios governantes os primeiros a rebaixar a língua cabo-verdiana, criando uma falsa hierarquia num sistema axiológico dicotómico em que num pólo se coloca a língua do intelecto e noutro a língua do afecto e do sentimento. Quando falam do português, falam de língua de cultura, conhecimento e tal, e quando falam do cabo-verdiano falam da língua em que nu ta djata, ta da pedi, koba, sura, ri , ntristise, ligando-a apenas a aspectos fisio-patológicos, em suma, ao pathos, reservando para a outra as funções do nous, do conhecimento intelectual, como se não fosse possível pensar filosofia, matemática, ciência, em cabo-verdiano, tomando de empréstimo as terminologias, como outras línguas, noutros tempos, as foram buscar ao grego e ao latim. Se a academia cabo-verdiana de letras não tivesse sido tomada por um bando de escribas toscos e medíocres, com grandes responsabilidades de gente que cremos séria, poderia ser-lhe acometida a função de autoridade em matéria de língua cabo-verdiana, mas assim como está nem é bom pensar-se nisso.»

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