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Kafka e o medo do anonimato

Paulo José Miranda, no Hoje Macau (23 Março 2021)

«No escritor, o medo do anonimato não é o medo de não se tornar conhecido, mas antes o medo de não se conhecer a si mesmo, de não encontrar a “sua voz” como escritor. Assim, anonimato é ser igual aos outros, mesmo que se seja muito conhecido. No fundo, aquilo que acontece a tantos escritores de sucesso. O caso mais paradigmático é o de Kafka. Mais do que querer ser conhecido, ele queria conhecer-se, não no sentido do filósofo, mas no sentido de encontrar a sua expressão autêntica, a sua identidade. Porque a identidade do escritor firma-se na página escrita.»
Alfred Perkins Jr. estabelece então, ao longo de toda a segunda parte de «Medo do Anonimato», uma dialéctica entre as personagens dos romances de Kafka e o medo do anonimato. «No escritor, o medo do anonimato transforma-se na vontade de superação de si mesmo ou, de um modo que assenta melhor no que aqui está em causa, o medo do anonimato leva o escritor a “tornar-se aquilo que se é”, como escreve Nietzsche em “Ecce Homo”.
O medo do anonimato é, assim, não apenas o propulsor do escritor, mas fundamentalmente o propulsor do romance. É no exercício da escrita que o escritor deixa o anonimato.»

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Calo-me quando morrer

Paulo José Miranda, no Hoje Macau (16 Março 2021)

«É este o tom do romance, que acaba por ser quase todo narrado pela fala da septuagenária a dar as direcções até à casa do avô do narrador, enquanto descreve a vida dos habitantes da aldeia. Quando a jornalista, em Lisboa, perguntou a Enzo Rossi de onde lhe veio a ideia do livro, se tinha sido algo a que ele assistiu ou que lhe contaram, respondeu: «A ideia veio simplesmente de ver nas tabernas, nas lojas e nas praças de Palermo as pessoas a falarem da vida dos outros e de todos os acontecimentos do dia anterior, por mais insignificantes que fossem. Alguns mais velhos chegavam a repetir as mesmas histórias dias seguidos. As pessoas só se calam quando morrem. Custa-lhes mais o silêncio do que a fome, se esta não for prolongada.» Na altura em que li esta entrevista, tinha 24 anos, ainda não tinha lido o romance, e fiquei muito impressionado com aquela frase «as pessoas só se calam quando morrem». Mais impressionado ainda, porque já a tinha ouvido na primeira pessoa, quando era criança, por uma senhora num lugarejo perto de Sines: «calo-me quando morrer». Nesse tempo, ia muito para Sines, nas férias da escola, pois o meu pai, o meu avô e o meu tio-avô trabalhavam juntos e tinham lá uma casa. Aquela frase, que ouvi tantas vezes aquela senhora dizer, anos atrás, só agora me fazia sentido, ao ler aquela entrevista de Enzo Rossi. Nós temos uma relação estranha com a linguagem. Não falamos para dizer alguma coisa, mas para não estar calados, para não nos escutarmos no silêncio. Calar, só quando se morre. Quando já não nos é possível amordaçar o que podíamos pensar, o que podíamos contemplar.
Depois, e por causa daquela entrevista – na verdade por causa daquela frase – fui ler «A Aldeia». Evidentemente, quando cheguei às páginas do livro, já ia com esta frase e com tudo o que ela me tinha feito pensar e, talvez por isso, gostei muito do romance. Mas tenho a certeza de que a minha leitura sem aquela frase prévia, sem a entrevista do escritor, não teria sido a mesma. Sem «as pessoas só se calam quando morrem», que me levou à senhora da minha infância que dizia constantemente «calo-me quando morrer», teria lido o livro na superficialidade da sua narrativa. A frase que Enzo Rossi diz na entrevista nunca aparece no romance. Sem dúvida, sem essa frase anterior, seria capaz de reconhecer o engenho do escritor, quer pela ideia quer pela capacidade narrativa, mas pouco mais do que isso. O que me faz pensar: o que é que lemos quando lemos? Ou seja, do mesmo modo que aquela frase dita pelo escritor numa entrevista me fez ler o livro completamente fascinado, com «calo-me quando morrer» no horizonte de cada página, sem essa frase, de que maneira teria lido o livro? Numa neutralidade como a de quem ouve alguém contar uma história engraçada? Ou pior, deposto no preconceito de estar a ler uma historinha bem contada? Mesmo sem um pensar filosófico, não podemos deixar de ver que a linguagem encerra em si um enorme mistério: não se sabe o que ela nos diz. Nunca sabemos o que alguém lê quando está a ler. Nunca sabemos o que alguém ouve, quando está a ouvir. Este mistério é a própria linguagem, que nos faz falar até à morte. De tal modo, que preferimos não nos ouvir a nós mesmos a deixar de usá-la. Preferimos falar sem saber o que dizemos ou sem sequer nos perguntarmos sobre o que falamos, do que deixar de falar. Preferimos até falar da vida dos outros, de que não fazemos a mínima ideia, a não ser de vagos contornos, a ficar calados. Preferimos falar a não falar.»

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A maldição de Salieri

Paulo José Miranda no Hoje Macau (9 Março 2021)

«Quando, em 2017, Andrzej Górzki publica o ensaio chamado «O Lado Solar de Salieri», tornou-se de imediato alvo do «regime» polaco. Górzki nunca chega a citar quaisquer nomes, nunca pessoaliza, embora o governo polaco se tenha sentido atacado, conseguido retirar o livro de circulação e obrigando o autor a pagar uma multa, sem qualquer base constitucional. O ensaio é dividido em três partes distintas. Mas antes avançarmos para o livro, é preciso ter em atenção duas coisas prévias: primeiro, o Salieri de Górzki não é o de Pushkin, embora seja fundado neste; segundo, à personagem de Pushkin, Górski retira-lhe a inveja ou outras fraquezas, ficando apenas aquilo a que o autor polaco chama «capacidade de apreciar o génio que não tem». Aquilo que Górzki pretende é, por um lado, conceptualizar a apreciação e o conhecimento, que são os instrumentos de se poder compreender o génio e, por outro, mostrar como isso pode e deve levar sempre a defender o que mais importa. Porque a tese de fundo do autor é educacional.
Posto isto, na primeira parte do livro, Górski introduz a personagem de Salieri como conceito que descreve todo aquele que não é suficientemente estúpido para não dar importância ao génio, nem tão inteligente quanto o génio, apenas o suficiente para entendê-lo, perceber a diferença que há entre ambos e com isso prestar-se a defender aquilo que ele cria. Leia-se o que o autor entende por «estúpido» e por «génio»: «[…] estupidez enquanto incapacidade de entender aquilo que está a ouvir, a ler, a acontecer. A estupidez é a surdez da alma. E surdez é metáfora para incapacidade de apreciar não apenas o que a grandeza humana nos dá, mas também a beleza da natureza e o gesto de que pode conduzir a melhorar a cidade. Génio é a capacidade de acrescentar, de modo radical, beleza, conhecimento ou bem-estar ao mundo.» Quanto a Salieri, e enquanto conceito, escreve: «Se a estupidez ou o génio são incontroláveis, pois ninguém pode fazer nada quando a ser um ou outro, ser-se Salieri depende inteiramente de nós. E quem é este que podemos ser? Aquele que se esforça por ser melhor do que é, a cada dia, a despeito de saber que não pode ser Mozart.» No fundo, Salieri é «[…] aquele que somos. Aquele que aprendeu a conhecer e a apreciar a beleza e o conhecimento, e embora não seja suficientemente inteligente ou genial para produzi-los, consegue defender o génio, ao entendê-lo e promovê-lo. A beleza e o conhecimento são também visíveis no espaço público, na política e na educação. Educar, desde a Antiga Grécia, a par da boa gestão pública da cidade, é a mais bela das actividades humanas.»
Estender o conceito de génio à política e à educação e à transformação da cidade foi o que lhe trouxe todos os problemas que tem tido com o «regime». «Salieri compreendeu o génio de Mozart quando mais ninguém o compreendia. Porquê? Porque foi educado para isso. Não se pode ser educado para o génio, mas pode-se ser educado para o entender. Ninguém é educado para a ditadura, mas pode ser educado para a democracia.»
Na segunda parte do livro, Górzki afirma que o nosso tempo é o tempo onde já não há «Salieris», apenas estúpidos e raramente génios. O génio tem também uma decadência neste nosso tempo. «O génio hoje é aquele que joga à bola, que apresenta um programa de televisão ou forma um partido de matriz prepotente. […] E a maioria das vezes são os estúpidos a consagrar os génios. Porque o génio do nosso tempo é ter sucesso e falar mais alto e o que a maioria quer ouvir. […] estúpido não é não contrário a não ser eficaz numa profissão ou numa qualquer actividade, mas surdo para a alma, incapaz de se abrir ao que é o belo e o melhor para todos».
Na terceira parte do livro, o autor polaco tenta mostrar-nos como Salieri – o Salieri Solar, como lhe chama – nos faz falta e de que modo deveríamos privilegiar a formação de «Salieris» na nossa sociedade. Escreve: «A educação, desde a mais tenra idade, deveria concentrar-se em formar “personalidades Salieri” ao invés de estimular a formarem-se “Mozarts”. Até porque, como já vimos anteriormente [páginas antes, no ensaio], não é possível formar “Mozarts”, apenas aprender a apreciá-los. Mozart pode ser um Hitler, mas Salieri seria sempre um Churchill. Os humanos formam-se.»

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Rock Reflection 2

Paulo José Miranda no Hoje Macau (2 Março 2021)

««Os Talking Heads, Brian Eno e Adrian Belew não estavam apenas atentos ao futuro [refere-se às inúmeras inovações sonoras] e aos ritmos mais ancestrais [influencias dos ritmos tribais africanos], a canção “Houses in Motion” mostra que também estavam muito atentos ao que de mais contemporâneo se fazia, com a magnífica guitarra de Adrian Belew a lembrar bastante o trabalho de um dos melhores guitarristas da época, Ricky Wilson, que viria a morrer de sida cinco anos depois do lançamento de “Remain in Light”. Ricky Wilson era irmão de Cindy Wilson, e ambos eram membros fundadores dos B-52’s, banda da Georgia, que gravara o primeiro disco no início de 1979, álbum com o mesmo nome da banda, e o segundo no início de 1980, «Wild Planet», portanto discos anteriores a “Remain in Light”. Ricky Wilson tocava guitarra de um modo muito peculiar, apenas com quatro cordas, as duas primeiras e as duas últimas; as suas guitarras não tinham as cordas do meio, a sol e a ré. Aliado a isto, usava várias afinações completamente fora da normal, sendo a mais usual afinada do seguinte modo: DA-BB (Ré, Lá-Si, Si). Isto implicava necessariamente um som original, que era amplificado por um Fender Silverface Deluxe e por uma palhetada percussiva, muito ritmada, por vezes como se fosse um baixo. E este som bastante percussivo e ritmado é precisamente o que Adrian Belew faz em “Houses in Motion”, como homenagem não apenas ao guitarrista dos B-52’s, mas como forma de sublinhar o que de melhor se fazia no final dos anos 70 e princípios de 80. Aliás, não terá sido por acaso que no ano seguinte, em 1981, os B-52’s tentaram fazer o terceiro disco, ainda com Ricky na guitarra, tendo David Byrne como produtor. Infelizmente, os desentendimentos foram tantos que o projecto não chegou a concretizar-se.» Outra das peculiaridades que contribuíam para o som característico de Ricky Wilson e que Louise Stanley não menciona era o uso de cordas muito mais grossas do que a maioria dos guitarristas usava: 0.13 (a maioria usava e usa 0.09 ou 0.10). E concordo em absoluto quando Louise Stanley escreve «Ricky Wilson é um dos guitarristas mais subvalorizado da música popular, que Adrian Belew reconhece e a quem presta homenagem.» Para não falar que o modo como fazia uso dos harmónicos irá influenciar directamente The Edge, guitarrista dos U2. Louise Stanley escreve: «Assim, sem dúvida que “Houses in Motion” é uma canção em que Adrian Belew presta uma homenagem justa e em tempo real não apenas a um dos mais originais guitarristas do seu tempo, mas também àquele que estava adiante do seu tempo, no tocante à amálgama entre música branca e música negra. Era uma forma de trazer para dentro do disco mais revolucionário da história – pelo menos ao tempo é – uma banda e um guitarrista que contribuíram para que isto fosse possível.» Repita-se a passagem de Louise Stanley: «Na música, qualquer que seja a sua expressão, não há revoluções que não sejam musicais.»»

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Rock reflection 1

Paulo José Miranda, no Hoje Macau (23 Fevereiro 2021)

«Acerca de «Remain in Light», só recentemente tive conhecimento de que a minha experiência com o disco foi muito similar à de um importante músico pop-rock norte-americano, mais conhecido como vocalista e mentor dos Nine Inch Nails, Trent Raznor. Numa entrevista em 2020, Raznor disse que «Remain in Light» era o melhor disco de sempre. Não apenas o melhor da década de 80, como escreve Louise Stanley – «Estou convicta de que “Remain in Light” é o melhor disco da década de 80.”» –, mas o melhor de sempre. Leia-se o que Raznor disse na entrevista, acerca daquele que é para ele o melhor disco de sempre da história da pop-rock: «Trata-se de um dico que não entendo quando o ouvi pela primeira vez, no início dos anos 80. Nessa altura, vivia numa pequena cidade do interior, sem quaisquer actividades culturais. E, vindo do nada, chega este disco. Uma obra de arte estranha, sintética, polirrítmica, com influências africanas, que me baralharam todo. […] O que acontece com bons discos quando os ouvimos pela primeira vez, como neste caso, é que nunca sabemos bem com o que estamos a lidar. Não temos medida de comparação. Mas ficamos fascinados por eles, e depois de o ouvirmos seis vezes o disco começa a revelar-se. À décima audição estamos completamente apanhados. Mas mesmo quando o ouves pela trigésima vez, descobres coisas novas. Foi com “Remain in Light” que aprendi tudo isto e o vivi pela primeira vez.» A experiência que Trent Raznor descreve é muito similar à minha, embora nem por um momento duvide de que ele escute melhor esse disco do que eu, pois não duvido que tenha melhor ouvido e saiba mais de música pop-rock do que eu, além de ter sido considerado imortal por David Bowie, que tinha grande admiração por Trent. Bowie e Raznor fizeram uma tournée juntos em finais de 1995 início de 1996 e também uma música e vídeos, «I’m Affraid of Americans». É muito provável que a musicalidade de Trent Raznor, e o encontro entre ambos, tenha escurecido o coração de Bowie para sempre. Podem assistir aqui a uma das canções dessa tournée «Reptile», dos Nine Inch Nails, ao vivo com David Bowie: https://www.youtube.com/watch?v=wJIJzmcc4MY. Ou ao concerto inteiro, aqui: https://www.youtube.com/watch?v=j4sP1CTuIjs. Curiosamente, ou talvez não, dez anos mais tarde Trent Raznor cantaria esta mesma canção, «Reptile» com Peter Murphy: https://www.youtube.com/watch?v=gvClJOA5lqA
Esta breve viagem aos Nine Inch Nails e a David Bowie teve apenas como objectivo sublinhar a importância da escolha do quarto álbum dos Talking Heads como o melhor disco de sempre. Trent Raznor poderia ter escolhido um dos discos Bowie do período de Berlim, que ele tanto gosta, poe exemplo, mas escolheu «Remain in Light». Poderia ter escolhido algo mais obscuro, como a sua música ou aquela que usualmente ouve mais, mas escolheu um disco que é o oposto disso. O que tem este disco de tão especial afinal?»

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Afundar convicções

Paulo José Miranda, no Hoje Macau (9 Fevereiro 2021)

«Sara não conseguia imaginar a sua vida ligada a um homem. Viver para servi-lo, para lhe ser fiel, para tomar conta de uma casa, de uma família. Ver um homem chegar ao fim do dia a casa como se fosse um altar que ganhara vida. Nessa noite, ao jantar, resolveu enfrentar o pai. Pousou dramaticamente os talhares, pediu que lhe prestasse muita atenção e disse: “Para que quer que eu continue a mentira, pai? Porque quer fazer com que eu diga que vou ser fiel para sempre e ter filhos que continuem este modo de vida, que é uma irrealidade que todos à nossa volta teimam em proteger?
Porque quer que eu faça isso? Não vê que não conseguirei viver assim? Eu não preciso de um homem para viver, pai, mas preciso de ler.” Contrariamente ao que Sara esperava, o pai sorriu e olhou-a fixamente nos olhos, antes de começar a falar: “Diz-me uma verdade e podes fazer o que quiseres. Uma só, que se segure à chuva e ao sol, à passagem do tempo. Não vês que não nos resta nada a não ser a mentira? Não há uma única casa que não tenha sido erigida com mentiras, Sara! São elas que fizeram as paredes, os telhados, as cercas que delimitam o que é de cada um. Foram as mentiras que delimitaram as fronteiras dos estados e deste país. Achas que tudo isso é verdade? Há alguma verdade nisto? E achas que há mais verdade nos livros de que tanto gostas do que numa casa?” Parou de falar. Segurou os talhares para continuar a jantar, mas ainda antes de o fazer, e balançando a faca e o garfo, como se dirigisse uma grande orquestra, disse: “Casar com um homem rico, que te proporcionará tudo o que desejares e até coisas que não sabes que existem, não me parece que seja o pior que te possa querer. Se nada é verdade, minha filha, agarra na melhor mentira que puderes.” Quando se levantou da mesa, apesar de não ter entendido o pai, Sara sentia um medo desconhecido, como se a vida lhe tivesse revelado um segredo. Ainda antes de abandonar a sala de jantar, ouviu o pai dizer: “E ainda hás-de me dizer porque é que os livros são melhores que um homem para a tua vida! Achas que são palavras que te vão fazer feliz?” Era mais um furo no barco de certezas de Sara. Retirava-se ainda mais abalada. »

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A ética e o monstro

Paulo José Miranda no Hoje Macau (2 Fevereiro 2021)

«Jordan traça uma relação de similaridade entre a ética e o medo da pena jurídica ou até a pena social, isto é o modo como os outros nos passariam a ver se descobrissem o que fizemos, com a Bela e o Monstro. Depois de introduzir o problema que o traz, no início do livro, Jordan vê necessário fazer uma pequena síntese do livro Bela e o Monstro, de modo a preparar a sua análise. A versão que Jonathan Jordan segue é a segunda e a mais conhecida versão, de 1756, de Jeanne-Marie Leprince de Beaumont, e não a versão original, de 1740, de Gabrielle-Suzanne Barbot. Assim, e depois de explicar a relação entre o conto de fadas e o propósito do seu ensaio, Jordan passa a mostrar-nos o resumo que lhe interessa do livro do século XVIII: «O livro narra a história de um comerciante muito rico que tinha três filhas. A mais nova chamava-se Bela, gostava de ler bons livros e tratava bem todas as pessoas. As irmãs mais velhas eram arrogantes, tratavam todas as pessoas com sobranceria, diziam mal de todos os que julgavam inferiores ou não fizessem parte dos seus círculos – muitas vezes até mal dos seus pares –, para além de só pensarem em festas e em serem aduladas por admiradores. Devido ao seu interesse pelos livros, pela sua generosidade e pela completa falta de interesse nas questões mundanas, as irmãs humilhavam frequentemente Bela, principalmente depois da falência do pai, e de terem sido obrigadas a viver numa casa no campo, muito longe da cidade. Aqui, só Bela trabalhava. Era a primeira a acordar e cuidava da casa. Nos tempos livres, lia. Passado um ano, por questões de negócios, o pai teve de partir em viagem. Quando o viram partir, e prevendo voltarem aos dias faustos de antigamente, as filhas mais velhas pediram-lhe muitas coisas; Bela pediu apenas que o pai lhe trouxesse uma rosa. O comerciante partiu. No regresso perdeu-se e perdeu as mercadorias. O inverno chegou.
Durante um enorme nevão, já pensando que ia morrer de frio e fome, avista ao longe umas luzes. Ao chegar perto, deparou-se com um castelo com lindos jardins floridos, como se ali nunca houvesse inverno. Lá dentro, numa das salas, estava uma mesa cheia de comida e uma lareira acesa. Comeu, deitou–se próximo do lume e acabou por adormecer. No dia seguinte acordou e foi ao jardim colher uma rosa para a sua filha Bela. Nesse momento, um grande e horrível monstro irrompe furioso. Perdoava-lhe o abuso da comida e da dormida, mas não lhe admitia o roubo das rosas. Isso era inadmissível e deveria ser punido com a morte. Cheio de medo, o comerciante explicou que era para a sua filha mais nova. Disse que tinha perdido tudo e a rosa era a única coisa que lhe podia dar. Ao saber das filhas, o monstro propôs trocar a vida dele por uma das filhas. Deixava-o partir se ele lhe enviasse uma das filhas para o castelo. Ao chegar a casa, o comerciante conta o sucedido às filhas e Bela aceita ser entregue ao monstro, julgando que ele a devoraria. O resto do livro não importa para a nossa análise. O que importa é a relação entre Bela, as irmãs e o monstro.»

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Faz-me um desenho

Crítica de Paulo José Miranda a «As orelhas de Karenin», de Rita Taborda Duarte (Colóquio-Letras 206 Janeiro 2021)

«As orelhas de Karenin» é um livro que, antes de mais, nos faz questionar o modo como apreendemos a leitura. O que é ler? O que é pensar aquilo que se lê? A poesia e o desenho são o veículo para estas reflexões e para uma proposta original de leitura. Como reflexo da leitura, aparece a vida. Do mesmo modo que lemos, vivemos. Seguros de que acompanhamos a cada passo o que está a ser descrito, o que está a ser vivido ou já foi vivido. O título remete-nos desde logo para duas linhas fundamentais do livro, através do qual tudo se passa: o enigma e a tradição. {…] Quanto à tradição, ela é antes de mais a tradição da linguagem, não so através do contínuo diálogo de citações. mas também da inovação dos autores – de Herberto a Nabokov, do livro de Job a Sérgio Leone e a Morris e Goscinny – e fundamentalmente a invocação dos mitos e das personagens clássicas. Estes, mais do que a invocação, são parte do corpo do livro. Melhor seria dizer que os mitos e as personagens clássicas são o húmus do livro.»

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A resenha de Immanuel Kant

Paulo José Miranda, no Hoje Macau (26 Janeiro 2021)

«Não estamos perante um romance muito original, mas para além do estimulante contexto histórico, o mais interessante é a forma como a resenha de Kant e a carta ao antepassado de Anna se cruzam com a descrição política dos seus dias, que são os dias em que vivemos. Quase no início da carta lemos estas palavras: «Entregando-se aos seus instintos mais baixos, o homem tem tanta necessidade de dizer mal de alguém quanto de endeusá-lo. Deriva daqui a facilidade com que os homens seguem os fanáticos. E isto é tão válido para os assuntos religiosos quanto políticos ou artísticos. Espero que ao longo da minha resenha o leitor tenha visto que só a razão e o conhecimento podem servir de antídoto para tamanha doença do espírito.»
Segundo Anna Scheler, a ideia de escrever este romance veio quando assistia aos noticiários das notícias do Brasil e à eleição de Jair Bolsonaro como presidente do país. Diz a escritora numa entrevista: «Nessa altura estava debruçada no estudo de Kant, particularmente o “Ensaio Sobre as Doenças da Cabeça” – texto de Kant também publicado na revista de Hamann em 1766, em cinco números, em que também critica Swedenborg – quando vejo aquelas notícias, que de imediato se ligaram à eleição de Donald Trump e ao crescimento dos governos autoritários e de partidos de extrema direita. Pensei na necessidade de voltarmos a Kant. Na necessidade de razão que o nosso tempo tem. Nestes tempos sombrios, estamos muito necessitados de voltar a ler Kant, que se bateu pela sanidade humana como poucos filósofos o fizeram.»»

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Um livro uno e múltiplo

«Paulo José Miranda escreve de forma singular, expressiva, intimista e reflexiva. A sua escrita procura a unidade na multiplicidade dos textos e autores.
A editora Abysmo (2019) reuniu em livro, numa cuidada edição com ilustrações de Tiago Albuquerque, três contos – Um Prego no CoraçãoNatureza Morta e VícioTrês textos distintos, escritos em momentos diferentes, mas que poderão ser lidos como uma trilogia que nos fala sobre o século XIX português, sobre escritores e pensadores, criação artística que nos induz a uma reflexão sobre a vida, o amor, a felicidade e a tristeza.»

Um livro por semana, Plano Nacional de Leitura (19 Dezembro 2019)

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