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É de lá

Nuno Miguel Guedes no Hoje Macau (20 Outubro 2021)

«Agora a sério, por uma vez. Permitam que volte a abusar da vossa generosidade para regressar às pequenas coisas que engrandecem mesmo à nossa frente, minério demasiado nobre para este modesto mas teimoso garimpeiro: esse foi o dia em que algo se terá passado com o servidor Google que alimenta as principais redes sociais deste mundo. De repente, tudo desapareceu. Angústia, horror, dúvida, impotência: o que terá acontecido, o que posso fazer, como manter o contacto com quem queremos e, ainda mais terrível, de que maneira poderão entrar em contacto comigo? Será do meu telemóvel? Será, para reabilitar uma antiga e patusca expressão dita sempre que a ainda púbere televisão portuguesa deixava subitamente de transmitir – será “de lá”?

A questão técnica pouco importa para o que me interessa. Menos ainda o prejuízo financeiro que terá custado ao pobre Zuckerberg – fala-se de seis mil milhões de dólares – a que, estou certo, conseguirá sobreviver. Não: foram as consequências desse hiato tecnológico que me levaram a escrever. Ou seja: de repente, de forma inesperada aconteceu isto: houve gente que ligou. Assim, de viva voz. Lembram-se do que isso era, amigos? Usava-se muito, anexado a outro costume em extinção a que se deu o nome de “conversar”.

Aqui chegado, importará dizer-vos ou repetir para os pobres que insistem em ler-me desde o início: não tenho nenhuma simpatia ou convicção pelo “antes é que era bom”. Nada. Agora é que é. Mas existem coisas que funcionam, que atravessam os dias e continuam a fazer a vida melhor. A voz de um amigo, por exemplo, é uma delas. Não um eco no WhatsApp, não uma fotografia no Instagram. A voz, alguém que vos telefona – ainda é assim que se diz? -, um outro ser humano como interlocutor nem que seja para oferecer as mais terríveis notícias. Ou as melhores.»

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O segredo do cool

Valério Romão no Hoje Macau (11 Julho 2021)

«As redes sociais vieram redefinir essa noção de ícone que, há apenas duas décadas, pertencia quase exclusivamente à indústria do entretenimento. «Cool» era ser parecido com uma estrela de cinema ou da música, vestir-se como eles, fumar como eles, viver no limite do perigo e com um pé na decadência, se possível, como eles. «Cool» era uma daquelas propriedades subtis, difíceis de precisar de um ponto vista objectivo mas absolutamente evidentes ao contacto. «Cool» era qualquer coisa que os outros tinham e que nós, o resto, se esforçava por copiar ou a passar a vida fingindo não se lhe dar qualquer importância. «Cool» tinha um rosto. Melhor: tinha alguns rostos. Era uma espécie de caleidoscópio que o tempo girava para, como na frase do romance de Tomaso di Lampedusa: «tudo mudar para tudo ficar como estava».

Como muita coisa desde o advento da Internet e das redes sociais, o «cool» democratizou-se. Deixou de pertencer com exclusividade aos actores e cantores deste mundo (apesar do finca-pé que estes fazem na tentativa de segurar o manto do rei que se afastando) e começou a aparecer um pouco por toda a parte. Os «influencers», palavra que me custa tanto a dizer como a grafar tornaram-se um porta-estandarte do «cool» contemporâneo. Através das suas publicações, sobretudo no Instagram, cativam a atenção de milhões de pessoas que, embasbacadas em frente aos ecrãs dos seus telemóveis, sonham com passar férias onde aquela foto foi tirada, sonham com ter aqueles lábios, aquelas sobrancelhas (um dos maiores e para mim mais incompreensíveis fenómenos do «cool» dos últimos anos: a estética da sobrancelha), aquele corpo. «Cool» é, em grande parte, sonhar. Sonhar com poder, com a forma de poder mais imediata que existe, que é aquela que radica na beleza: o poder que se tem só por se aparecer. Ser «cool» é ganhar mesmo antes de o jogo começar, apenas por comparência.»

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