«De modo geral, é o biografado que nos leva a ler a biografia e não o biógrafo. E assim também aconteceu neste caso. Gosto muito de ver Mitchum no ecrã, desde que vi pela primeira vez aos 17 anos o filme «The Night of The Hunter». O que esta nova biografia traz de novo não são factos, mas as reflexões do seu biógrafo, que casam na perfeição com a vida e a carreira de Mitchum. São por demais conhecidas as piadas do actor Robert Mitchum. Relembro aqui quatro, que já conhecia do livro de Server e que McCormack também cita na sua biografia. A primeira, nos anos 50: «Ir para a escola para aprender a ser actor é como ir para escola para aprender a ser alto.» Segunda, em meados dos anos 80: «Hoje toda a gente faz jogging, é uma moda. Não tenho nada contra. Já tentei algumas vezes, mas entorno sempre o whisky.» Terceira, também nos anos 80: «Estou completamente em desacordo quando dizem que a marijuana vicia. Fumo marijuana todos os dias há 30 anos e não sou viciado.» Quarta, nos anos 60: «Se alguma vez representei nos meus filmes, não me dei conta disso.» Estas passagens, por si só, dizem muito acerca do homem que foi Mitchum. Um sentido de humor apurado e um modo de estar de desafio constante. McCormack diz-nos: «Quando foi contactado para filmar, aos 25 anos, propuseram-lhe que fizesse uma operação ao nariz, ao que ele respondeu de pronto: “Muito obrigado, mas não tenho quaisquer problemas com o nariz, respiro perfeitamente.” E desde cedo ficou claro para a indústria do cinema que Robert Mitchum não seria nunca um produto. Ou se adaptavam a ele, ou teriam de o deixar ir embora. Adaptaram-se. Pelo menos, adaptaram-se o que puderam.»»
«A narradora-autora descreve a sua vida – desde que saiu da ilha – como uma espécie de claustrofobia: «Sinto falta de ar quando retorno à ilha, como se eu me tornasse irrespirável para mim mesma. Aquela que fui, e não consigo recuperar nem pela memória, e aquela que poderia ter sido se não tenho deixado a ilha, cercam-me de tal maneira que não tenho espaço para respirar.» Assim, a sua relação com Wolfgang, naquele período de férias de ambos, a meio do Atlântico, repõe uma normalidade no modo como vive a ilha. «A normalidade de quem está de férias, seja em que lugar for do mundo. Porque as férias são sempre férias de nós. Pois por mais que nos levemos na bagagem, como se costuma dizer, a verdade é que não a arrumamos nem desarrumamos como usualmente. E nem sequer olhamos a manhã com os mesmos olhos. Mas a ilha nunca me permitiu ter férias de mim. Vir à ilha sempre foi trabalho. Só Wolfgang conseguiu o milagre de me ver livre de mim. Sentimento que era amplificado por sentir que também ele não era ele. Estávamos de férias da vida, como sempre acontece numa intensa paixão por outrem.» Independentemente deste sentimento de férias da vida, aquilo que perpassa ao longo de todo o romance é a ideia de exílio de si mesma que a narradora – nunca é dito o seu nome – passa para o leitor, devido a ter-se partido em duas, aos 16 anos. Propositadamente, Margarida N. Silveira adianta o relógio da realidade um ano, como se fizesse da sua vida uma espécie de «delay» em relação à narradora do livro. Regressando à ideia de exílio, que já vinha da sua tese de doutoramento, aquilo que mais impressiona o leitor é que o exílio não é referente a uma terra, a uma comunidade, a um país ou uma língua, mas a si mesma. É de si mesma que a narradora – suspeita-se que a autora também – se exila ou é condenada a isso, ao deixar a ilha.»
«Fez ontem, 26 de Abril, 25 anos. Infelizmente, Jungersen não deixou mais nenhum livro além de «A Grande Invenção», onde nos mostra, através de mais de duzentas páginas, como «[…] a grande invenção humana não foi a roda, a penicilina ou o foguetão que nos levou à lua, mas a alegria.» No século XIX, Darwin escrevia que a capacidade de adaptação era a grande responsável pela sobrevivência das espécies e, concomitantemente, dos espécimes. E, segundo Jungersen, a alegria é indissociável da capacidade de adaptação. A capacidade de adaptação não se define apenas em relação ao clima, à alimentação, às contrariedades físicas, mas também em relação à capacidade de se ser alegre. Escreve, logo na página 17: «Sem alegria, ninguém sobrevive.» E, depois de várias páginas onde percorre várias doenças psicológicas, como a depressão, o transtorno de ansiedade e o transtorno obsessivo-compulsivo, ligando-as à falta de alegria – «[…] todas estas doenças têm como principal problema a incapacidade de produzir ou de encontrar alegria. É a falta de alegria que está na base do problema e que é comum a todos os distúrbios psicológicos mencionados antes. As diferentes expressões da doença é o modo como a pessoa reage a essa ausência de alegria.» Mas o que é a alegria? Ou o que é que o autor dinamarquês entende por alegria, que acusa de ser a maior invenção humana? Leia-se as páginas 32-3: «Em a Epístola aos Filipenses, Paulo escreve: “Alegrai-vos sempre no Senhor. Repito: Alegrai-vos!” A palavra alegria vem de um verbo grego “phyo”, que significa “produzir”, querendo com isso significar que quem é alegre é produtivo, fecundo. […] Independentemente de uma posição religiosa, o que está em causa é que a alegria, seja no Senhor ou no Universo, é fundamental. A alegria é criadora de vida. É a alegria que permite que possamos ver o futuro como um lugar que não nos é hostil, que nos permite ver adiante e aligeirar o medo.» A alegria, enquanto invenção, não é apenas a criação de vida, mas a criação de sentido para a vida, porque «[…] alegria é uma disposição que nos afasta do peso de todos os fins. E todos os fins, quer seja o de uma relação amorosa, o de um projecto em que se está envolvido ou o da própria vida ou daqueles que amamos, são impeditivos de continuação. Viver com a visão do fim continua ou frequentemente impede que a vida avance. E a alegria é esse desbloqueador. Depois de ganharmos consciência, de sabermos que tudo tem um fim, era preciso um antídoto para que a vida não bloqueasse de vez. A alegria é esse antídoto, essa grande invenção, que permite que o ser humano continue, apesar da consciência.» Jungersen faz também a distinção entre capacidade de criar alegria e capacidade de encontrar alegria. «Ambas são importantes, pois são elas que nos colocam nos eixos do futuro, de vermos a vida com sentido ou, pelo menos, de não vermos a vida sem sentido nenhum. Há, contudo, duas capacidades diferentes: capacidade de criar alegria e capacidade de encontrar alegria. A primeira é aquilo que podemos definir como capacidade de criação e a segunda a capacidade de encontrar as criações que promovem o bem-estar. […] em ambas, é fundamental a aceitação da alegria. Pois não é de todo certo que aquele que cria ou aquele que encontra alegria a aceite. Podemos criar e recusar essa alegria, recusar participar na própria dádiva de vida que foi criar. Assim como podemos encontrar a alegria a cada esquina e constantemente rejeitá-la. Por conseguinte, a despeito de se criar ou de se encontrar alegria, a capacidade de aceitá-la é determinante.» No fundo, o que parece estar em causa neste livro é mostrar que, contrariamente à ideia generalizada de que a tristeza pode ser um grande propulsor de criação, é a alegria que produz, porque é ela que permite que continuemos a projectar futuro e a ter forças para continuar, apesar de todas as contrariedades. «O mundo, sem alegria, não seria uma tristeza; simplesmente não existia. Embora pudesse existir a natureza.»»
«Leia-se essa passagem do livro: «Abib Justus responde assim a uma pergunta do apresentador acerca de uma possível interpretação ditatorial desta lei: // – Não podemos ser hipócritas! Ou bem que queremos que não se use o celular quando dirigimos, ou bem que não queremos mas fingimos querer, que é o que a lei nacional propõe, pois todos aqui sabem que ninguém cumpre a lei. Com o «descelular» torna-se impossível desrespeitar a lei… Olhe, vou dar-lhe mais um exemplo que deveríamos adotar: hoje a lei não permite que se ultrapasse uma velocidade máxima de 120 km/h, certo? Então porque permite que sejam vendidos carros que atingem 200 e 300 km/h? Deveríamos exigir que todos os carros não ultrapassassem os 120 km/h! Ou então jogue-se a lei no lixo. Carros com mais cilindrada deveriam ser vendidos para uso exclusivo em pistas de corrida, mais nada. // Como grande retórico que era, Abib Justus sabia que toda e qualquer polémica traria dividendos ao seu império, como ele próprio gostava de chamar em privado a este grupo financeiro. A questão de os carros serem vendidos como motores que não permitissem uma velocidade superior a 120 km/h fez furor por todo o Brasil. É impressionante ver como facilmente as pessoas se dividem acerca de coisas que desconhecem e das quais nunca sequer ouviram falar. Um pouco por todos os jornais e redes sociais a discussão rebentou. Dos carros com controlo de cilindrada até à proibição de venda de refrigerantes, que se sabe serem prejudiciais à saúde, ou de alimentos chamados de junk food, foi um salto. A esquerda, a direita, os ecologistas, os vegetarianos e os defensores dos direitos dos animais enchiam páginas e páginas online exigindo que o governo federal tomasse a posição do estado do Paraná, com a diferença de radicalizar a posição de controlo sobre o que nos faz bem, e cada qual com sua razão e interpretação, como é comum por aqui em matéria de política. Não demorou mais de um mês para haver manifestações em Brasília pressionando o governo a proibir a venda de refrigerantes, de bebidas alcoólicas, de “junk food” e até de carne animal. Havia já quem exigisse que Abib Justus tinha o dever de se candidatar à presidência do Brasil, em nome dos brasileiros que estão fartos de hipocrisia. É sabido que os tempos de crise são pródigos em forjar heróis e posturas radicais.»»
«O livro começa assim: «Deus não fez o mundo em dois dias, mas também não levou uma vida toda, costumava dizer Abib Justus, agora preso no trânsito, precisamente na esquina da Augusta com a Paulista, na direcção dos Jardins. Fala através do celular, quase aos gritos “O vinho ainda não chegou? E estão esperando o quê, que eu chegue aí para tratar disso? Vamos começar a servir o jantar em uma hora e você me telefona agora para dizer que estamos sem vinho, que ainda não foi entregue? Tenho de ser eu a fazer tudo? Vá na Domus e pegue os vinhos, que eu mesmo vou ligar para lá agora e digo ao Rodrigo quais são… Sim, depois pago… Eu digo isso a ele quando ligar, sim. E vá depressa! Ah, e vá a pé até lá… Depois apanhe um táxi pró restaurante, para evitar o trânsito da Itu… Não posso deixar o restaurante, ninguém faz nada do que deve ser feito!” A última frase já não foi para o empregado, mas para si mesmo. Abriu o Baobá há pouco mais de um ano e tem sido muito mais trabalho do que lucro. Mas está tudo caminhando dentro do previsto, menos as dores de cabeça pela gritante incompetência da mão de obra deste país.»
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