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A miúda mais bonita da turma

Valério Romão no Hoje Macau (28 Maio 2021)

«Quando a Luísa, provavelmente a miúda mais bonita da turma, meteu conversa comigo acerca do quão violentos os rapazes podiam ser nas suas brincadeiras, senti-me, pela primeira vez na vida, especial. Outra humanidade, à margem dos penteados decalcados da Bravo e das calças da Chevignon, era possível. Eu sempre achara que a Luísa, a interessar-se por alguém, iria naturalmente sucumbir ao charme do Ivan, um latagão magríssimo de metro e setenta (eu olhava para ele de baixo para cima sem nunca ousar dirigir-lhe uma palavra) com um mullet cujos caracóis loiros faziam inveja a qualquer querubim do renascimento. Eles eram o par perfeito. Com o seu aspecto irrepreensivelmente nórdico, contrastavam de tal modo com o nosso ar marroquino de algarvios queimados do sol que não acabarem juntos era uma ideia que roçava o pecado.
Quando a Luísa me convidou para ir ao cinema com ela, ver o Robocop, devo ter demorado uns bons dois minutos até lhe dizer, muito baixinho, que sim. Já era difícil acreditar que a Luísa pudesse achar em mim qualquer interesse que justificasse uma troca breve de palavras, mas convidar-me para o cinema tinha laivos de história para um daqueles defuntos jornais de notícias do bizarro e do além. Pedi emprestado umas calças de fato de treino a um amigo mais atreito à questão da moda e aperaltei-me com pude. Duas gotas do Old Spice do meu pai atrás das orelhas completaram a minha transformação. Às 19:15 estava à porta do café na baixa onde tínhamos combinado encontrar-nos. Era verão e a íamos à sessão das 20:30, pelo que pelas minhas contas, a nervoseira resultante de uma hora a tentar não fazer figuras de urso diante da Luísa dava para ensopar duas vezes a roupa impecavelmente passada a ferro que vestia naquele dia.
Passou-se o tempo, muito devagar, e a Luísa não apareceu. Tão desanimado quanto estranhamente aliviado, dirigi-me para o cinema. Era o universo a retomar o seu curso natural, pensei. Na bilheteira, vejo a Luísa e ainda pensei em gritar-lhe do outro lado da rua. Ainda bem que não o fiz. Ela estava com o Ivan. Ele, naturalmente imune ao embaraço, não parava de lhe contar o que eu imaginava serem, pelo riso dela, as melhores piadas do mundo. Eu, por dentro, desmoronei de amores pela primeira vez.»

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