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Fios Invisíveis

João Paulo Cotrim, no Hoje Macau (4 Agosto 2021)

Biblioteca, Grândola, sexta, 16 Julho

O Luís [Cardoso] lá foi contar ainda uma vez das mulheres da sua vida – a mãe que se desdobrou em mais mãe de onze além dos onze iniciais, a namorada que foi ao encontro das balas assassinas – afirmando assim e sem quebrar o mistério a força das vozes femininas no seu romance-poema, romance-rio. Omnipresentes, quase invisíveis, comme d’habitude. Acabo de saber que quem lhe lança a pergunta, em acto de apresentação, e há muito o lê daquele modo íntimo como só a tradução, a Catherine Dumas assinará recensão para a Colóquio Letras.

Dá-se a reunião bem acompanhada em dia quente, neste espaço novo, que contém rios no coração dos muros, por haver ali uma belamente desarrumada exposição da Ana [Jacinto Nunes], na qual se incluem as ilustrações que abrem aquela «sonata para uma neblina». Esquecendo as salas, exemplo de uma arquitectura fechada sobre si, ignorante de funções e destinos, ali se encontram dezenas de rostos em pose. Gosto do jornal que diz ao que se pode ir, sujando as mãos, com singeleza, sem contar em demasia. A pintura da Ana, para captar a vida, surge sempre irrequieta, como que inacabada, a caminho de outra coisa, o gesto do pincel em busca da forma exacta das suas personagens, esculpidas na cor e respectivos movimento e temperatura, mulheres e animais, abraçando-se, quebrando fronteiras, celebrando nevoeiros. Um jazz no qual o tecido pode ser instrumento. Invariavelmente, os rostos olham-nos, desafiam-nos para diálogo em fluxo, fonte brotando da fronte. Oiço dos vários quadrantes que só somos na mistura com o natural. Nasceste da cor e a ela voltarás. Aqui e ali, as peças de cerâmica sublinham isso mesmo pois abrigam raízes, fazendo nascer do barro cortinas de verde, bambus onde se escondem os ventos, outros verdes esguios que podem bem dar pássaros. «Entre nuvens e papiros», assim se chama a mostra e no nome se (des)arruma o assunto.

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E esse lado do fim do mundo?

João Paulo Cotrim no Hoje Macau (7 Julho 2021)

Santa Bárbara, Lisboa, Domingo longo começado no Sábado, 12 e 13 Junho

Na economia do tempo do micro-editor nunca sobra em quantidade para este lavrar das terras férteis. Estou em crer que o Mário [Gomes] se vai tornando na mais saborosa das fraudes literárias. Por exemplo, o Arno Schmidt nas suas mãos parece ter sido escrito em português, tal a limpidez de cascalho no fundo do riacho que por aqui se ouve. Será Arno extensão de Gomes? Anuncia-se, portanto, «A República dos Doutos – Romance-breve das Latitudes dos Cavalos», delirante “reportagem” ao lugar maravilhoso onde as artes e as culturas viveriam sem preocupações outras que a criação, ilha em movimento dividida por um muro, habitada por seres fabulosos e outros mais reconhecíveis.

Estende-se narrativa (para conforto dos carentes da anedota e outros preguiçosos) e explodirá moral (de agradar às tribos sanguinolentas dos malditos e outros mortos-vivos), mas o essencial está no labor da linguagem, com multiplicação ao infinito de planos, a lúdica recomposição das pontuações e outros sinais, e, sobretudo, o fraseado em pizzicato sobre escórias, imagens potentes, lâminas saltitantes, espinhos de rasgar peles. E por nisso falar, surpreendente erotismo para tão apocalíptico cenário. Certas obras inventam o presente. Se «Leviatã|Espelhos negros» podia ser sido livro de cabeceira durante a pandemia, estas «Latitudes dos Cavalos» continuam a ser ferramenta de ver ao longe, o que nos acontece ao perto. Ao calhas (e desformatado):

«Oh, ainda tem 1 hora ou 2 horas : afinal o fim do mundo é bem perto.» : «Pois, para pessoas como você !» (Pelos vistos ele gostou da resposta; passou a mão pelo bloco de barba maciço e deu um salto em frente, orgulhoso).
Nomes como terramotos ! : um sítio por onde passámos chamava-se ‹Tatara-káll› (e os cascos retumbavam ocos, como que a condizer !). –

Na – enfim, poderemos falar duma ‹aldeia› ? : as poucas cabanas de ramos esgalhados (alguns deles desfolhados até pelos mais famintos ou preguiçosos !). / Todos haviam retomado os seus afazeres, em plena paz : centauros barbudos com gadanhas ceifavam os lameiros. (Um deles, todo silhueta, levantou a garrafa, bebendo; (e eu achei por bem beliscar a minha perna : será que tinha adormecido a ler um livro de mitologia grega, Preller=Robert ?)).

Não ! Nunca na vida ! : uma centaura de óculos era certamente uma novidade (e além disso, mais velha : um balde de ferro com água estirava-lhe o braço : as mais velhas seguravam os seios maiores com ambas as mãos ao galopar. – ’ma fábrica de soutiens. Podia ser um negócio bombástico !).

E todos os nomes, como trovoadas, como lados entrelaçados, como aragem de fogo; como nudez da terra, cadinhos esquentados, ouro picado.»

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