David Dias em conversa com José Luiz Tavares (7′ 52″ RTP África 10 Junho 2021)
«Politicamente, vivemos numa espécie de esquizoglossia, isto é, esquizofrenia linguística. Senão vejamos: o mpd, partido que mais terá feito pelo avanço institucional da língua cabo-verdiana, nos seus dois primeiros governos, no início do multipartidarismo em cabo verde, quando passou à oposição bloqueou todas as iniciativas nesse sentido. E quando regressou ao poder praticou, através da ministra de educação de má memória, esse acto de quase glotocídio, que foi a eliminação pura e simples do já citado programa experimental de ensino bilingue, que tão bons frutos dera em portugal, em turmas compostas por alunos de múltiplas proveniências linguísticas, e vinha dando em cabo verde, insofismavelmente.
O paicv, partido que, supostamente, por razões ideológicas, seria mais favorável à oficialização, sempre que esta questão se coloca, é do seu interior que emergem as principais forças de bloqueio, conotadas com certos sectores geograficamente muito bem localizados, sendo um dos seus principais arautos um antigo ministro do regime do partido único, mas não se pasmem, sempre no mesmo jornal afecto à força política contrária, que também não se coíbe de dar voz aos portugueses que acham que ainda mandam em cabo verde, como certa vez um certo senhor Morais Sarmento (quais são os seus pergaminhos em matéria linguística? O que sabe ele da situação linguística particular de cabo verde?) e, mais recentemente, uma historiadora (cujo nome não me recordo agora) que disse coisas gravosas e sem qualquer correspondência com a verdade e, ainda que fossem verdade, em cabo verde deveriam mandar os cabo-verdianos. Não me consta que os cabo-verdianos vão a portugal opinar sobre a política linguística do estado português e onde a língua se encontra num estado bastante lastimável. Será a língua cabo-verdiana a culpada disso? Sobre o jornal ou jornalista que se presta a ser veículo dessas interferências externas, por cumplicidade, omissão ou simples incapacidade de rebater, está tudo dito. A dignidade não tem preço.
Aliás, são os nossos próprios governantes os primeiros a rebaixar a língua cabo-verdiana, criando uma falsa hierarquia num sistema axiológico dicotómico em que num pólo se coloca a língua do intelecto e noutro a língua do afecto e do sentimento. Quando falam do português, falam de língua de cultura, conhecimento e tal, e quando falam do cabo-verdiano falam da língua em que nu ta djata, ta da pedi, koba, sura, ri , ntristise, ligando-a apenas a aspectos fisio-patológicos, em suma, ao pathos, reservando para a outra as funções do nous, do conhecimento intelectual, como se não fosse possível pensar filosofia, matemática, ciência, em cabo-verdiano, tomando de empréstimo as terminologias, como outras línguas, noutros tempos, as foram buscar ao grego e ao latim. Se a academia cabo-verdiana de letras não tivesse sido tomada por um bando de escribas toscos e medíocres, com grandes responsabilidades de gente que cremos séria, poderia ser-lhe acometida a função de autoridade em matéria de língua cabo-verdiana, mas assim como está nem é bom pensar-se nisso.»
João Paulo Cotrim no Hoje Macau (5 Maio 2021)
«Podia bem ter ido apenas pelo lugar, melhor, pelo encontro ali que há muito se adiava, mas havia razão prática: a capa para a «Ode Marítimu», versão em cabo-verdiano da brutal engenharia e celebração dos mares e portos em nós segundo Álvaro & Pessoa, ilimitado (algures na página). E no processo desencadeado me reconcilio com o papel do editor. Ignorante do seu lado cabo-verdiano, acabei despertando um entusiasmo que já partiu nas mais diversas direcções, dando nó na rosa dos ventos. Está a acontecer o reencontro do Francisco com uma das suas línguas. Partiu do texto agora reescrito pelo José Luiz [Tavares] para uma narrativa gráfica que mastiga as paisagens daquelas ilhas por junto a de uma cidade mulata. (Pode ainda dizer-te mulata sem despertar os ogres da correcção automática?) Foi-me dado ainda ver partes do processo, o modo como a feitiçaria faz a ligação entre o concreto do mundo com a prática do desenho. A pintura redefine assim os dias, nada se se pôr à parte. Por aqui não nascem museus.
Na pressa vertiginosa habitual, estava a receber as últimas correcções do poetradutor, que insistia, a cada uma, em explicar-me as razões e as raízes, quês e porquês. Exemplo seja a importância do «n», onde se esconde o eu daquela língua, ainda para mais em sonoridade escorregadia que pede ginástica da língua-orgão, para que possa acontecer a língua-sentido. O José Luiz, não sei se o disse já a propósito de Camões, vai conduzindo a nova língua para mares infindos e abissais. Contra tudo e alguns, os que insistem pouco inocentemente em chamar-lhe crioulo. «Como quase vítima de glotofagia, usuário e estudioso», diz ele, «sei bem o que está subjacente à designação ainda que se não tenha a consciência: O crioulo de Cabo Verde, língua natural dos cabo-verdianos nascidos em Cabo Verde e língua de herança de parte da grande diáspora designa-se cabo-verdiano ou língua cabo-verdiana. Crioulos todos são, como a língua românica de Portugal é um crioulo do latim. Crioulo de Cabo Verde, designa apenas uma família de língua, assim como a língua românica de Portugal também indica uma família de língua.”»