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Henrique Manuel Bento Fialho lê Ana Freitas Reis

Henrique Manuel Bento Fialho lê «Cordão», de Ana Freitas Reis

Mais sóbrio em termos formais é o primeiro livro de Ana Freitas Reis, o qual obedece a uma distribuição rigorosa dos poemas que leva a pensar nesta obra como num longo poema em gestação. A palavra Cordão (Abysmo, Março de 2021) do título desperta, desde logo, inúmeras imagens, sendo a mais intensa aquela que acaba por advir da epígrafe final pedida de empréstimo a Herberto Helder: «cordão de sangue à volta do pescoço». Tratar-se-á, então, de um cordão umbilical, algo que, de resto, é sugerido no poema inicial que encena um parto, repercutido posteriormente nos pequenos poemas distribuídos por páginas ímpares através de um complexo lexical assaz sugestivo desse «rebento milagre» inaugural: coração, sangue, sopro, útero, pulmões, raiz. Não andaremos longe da verdade se situarmos esta poesia no campo de uma representação do corpo feminino e da mais essencial das suas funções, albergar a geração de um ser. Nisso é possível estabelecer um paralelismo com a própria natureza do poema, hospedeiro de uma entidade e de uma identidade que resulta da relação apaixonada entre quem escreve e quem lê. Mas nesse caso estaríamos já numa dimensão metafísica que não me parece ser a mais adequada à singularidade deste cordão, o qual me chega nitidamente enquanto elo ao «assombro de estar vivo» (p. 11). O que ressalta do umbigo é a ligação a uma anterioridade que em cada ser perpetua o mistério da vida. Espantosa é a forma como esse mistério acaba celebrado nestes poemas publicados num tempo obnubilado pela ameaça persistente da morte, a qual, não tendo sido omitida, serve para lembrar que «Ainda tens coisas acesas no teu corpo» (p. 58). Penso pois neste livro como na gestação de um poema, e penso no poema como na gestação de um ser. Poesia indelevelmente ligada ao corpo, às possibilidades de representação do corpo, por um cordão que vai sendo desatado de verso a verso através de uma sensibilidade rítmica notável que aborda a respiração como uma doação. O recurso insistente a anáforas pontua o movimento sincopado de um coração, na demanda de uma musicalidade que reverbera uma meticulosa selecção verbal. Não faltam sequer alusões mitológicas (o barro que se molda, Adão e Eva) ou ao paganismo organizado em torno dos ciclos da natureza (referências ao correr dos meses, à Primavera enquanto momento de renovação). O Verão é a estação privilegiada desta poesia solar, a qual se desvia da melancolia repisada e da soturnidade elegíaca mais corriqueira optando pelo fulgor das chuvas que fertilizam a terra enquanto «possibilidade na alegria» (p. 25). Há neste Cordão uma reaproximação do homem à natureza que supera a ruptura operada por um racionalismo castrador e cristalizador, o mesmo que nos usurpou toda a possibilidade de espanto e de mistério, toda a hipótese de milagre. Saúde-se a coragem de num livro de poesia fascinado com a vida, neste início de século tão dado à morte:

MINTO SOBRE O ESTATUTO CONTEMPORÂNEO

todos somos, finalmente, aspectos vagabundos da naturezaMaria Gabriela Llansol 
Continuamos a procurar o espanto
nas montanhas, insistimos
nos cumes altos, miradouros
frívolos ao serviço dos registos.
Saio para sentir o odor lunar,
procuro sinais de nascença pelo solo.
 
Não temo o chão da terra.
 
É noite ainda.
Caem flechas por entre os ramos secos
de um sobreiro.
Trincamos os espinhos da navalha.
As cabeças movem-se em direcção ao centro
da fornalha.
 
Porque sim,
Pela indolência da seiva que sabe
de uma revolução nocturna.
Encarno o perfume desgraçado desse lírio silvestre
quando afinal repouso nos seios da natureza.
 
Fica de dia.
Uma chuva opulenta inunda o nosso quarto,
certos beijos prolongam o voo,
sem temer a existência.
 
Hoje só conheço a terra,
a única que não esquece a persistência
e a possibilidade na alegria.

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Nefelibata de trazer por casa

João Paulo Cotrim no Hoje Macau (10 Março 2021)

«Santa Bárbara, Lisboa, sábado, 6 Março
A parada e resposta do Diário das Nuvens dura há 50 dias. Se soubesse extrair uma raiz do quadrado diria que nunca antes tinha estado tanto tempo a escrever ininterruptamente. Se me ficasse pela leitura faria melhor ao ecossistema, mas perdoe-se o mal que faz pelo bem que (ainda) sabe. Celebrámos a brincadeira com uma antologia em versão lençol que me pôs logo a sonhar com variações na pele de Lisboa: https://abysmo.pt/diario-das-nuvens-de-joao-francisco-vilhena-e-joao-paulo-cotrim/ O entusiasmo promete para já variações mais fílmicas, mas a brincadeira tornou-se caso sério. Surgem reacções comoventes, onde cada peça se revela espelho ou consolo. Além da partilha de interesses e trabalhos artísticos em torno destes fascinantes habitantes dos céus. Para celebrar a data redonda atropelei a regra e olhei por breves instantes para o miradouro (junto vai a visão correspondente do João [Francisco Vilhena]). As nuvens também se avistam umas às outras.
«Pare, escute, olhe. Na passagem de nível sem guarda que se atravessa, a paragem passou a ser um sexto sentido muito. Nas camadas superiores está posto trânsito dos diabos. As raivas que se condensam em rangentes nuvens dentatas não respeitam nada. Ao passo que as robustas saudades acumulam-se pacientando pela queda do sinal verde na passadeira vermelha. Os enxames de cristais de gelo circulam indiferentes em contra-mão. Andam praí a cuspir nuvens da boca para fora. Vai daí a locução própria do nível informal atrai cada vez mais praticantes. É vê-los equipados com desvelo a velar zelosamente pela nuvem de palavras. Um toque dá acessos e conta as vezes. Atracção fatal pelo artificial, a dos fazedores de chuva. Uma gaze mais não é senão nuvem feita tecido trocando consolo pela tintura do sangue. E quem chamou nuvem turva à primeva ecografia, primeira Eva?»

Santa Bárbara, Lisboa, terça, 9 Março
Perto tem morrido gente, mas também alguns nascimentos se anunciam e nisso sopra leveza. Vem grávido este livro cujo lançamento será gravado hoje, mas para acontecer mais adiante no âmbito do Ronda, o festival de poesia de Leiria (o novo normal bem tenta fintar o tempo). Por estar na colecção Mão Dita, por ser poesia, além do primeiro neste famigeradano, abre ainda janelas primaveris no coração pesadote da abysmo. «Cordão», de Ana Freitas Reis, com capa de Eugénia Mussa, diz como quem dança que o corpo «é um evento apaixonado» e que faz parte do mistério, que a mulher não abdica do seu papel principal, que ainda há lugar para o espanto e o assombro, que Deus faz parte da fauna e flora, que a investigação maior do mundo só pode ser feita pela palavra, ainda que condenada ao fracasso. Canta ainda muita música. Transbordemos portanto, que nem «Pégaso»:

“Só o que gera salva
e tudo o que nasce deixa buraco,
o fino corte da beleza.

Não seremos nunca o pássaro afinado.
Porque o corpo é água viva
e todo o movimento
é duelo contraditório.

O jogo é deixar transbordar
atravessando o corpo.
O campo empírico
tem um modo próprio de pulsar.

Sobram-nos suspiros sob a cintura.
Por instantes liberta-se
o fardo empoleirado aos ombros
dando um salto que não depende
do porte do cavalo.”»

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