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Estremece o vento. Sobe a manhã. O calor abre.

João Paulo Cotrim no Hoje Macau (5 Maio 2021)

«Podia bem ter ido apenas pelo lugar, melhor, pelo encontro ali que há muito se adiava, mas havia razão prática: a capa para a «Ode Marítimu», versão em cabo-verdiano da brutal engenharia e celebração dos mares e portos em nós segundo Álvaro & Pessoa, ilimitado (algures na página). E no processo desencadeado me reconcilio com o papel do editor. Ignorante do seu lado cabo-verdiano, acabei despertando um entusiasmo que já partiu nas mais diversas direcções, dando nó na rosa dos ventos. Está a acontecer o reencontro do Francisco com uma das suas línguas. Partiu do texto agora reescrito pelo José Luiz [Tavares] para uma narrativa gráfica que mastiga as paisagens daquelas ilhas por junto a de uma cidade mulata. (Pode ainda dizer-te mulata sem despertar os ogres da correcção automática?) Foi-me dado ainda ver partes do processo, o modo como a feitiçaria faz a ligação entre o concreto do mundo com a prática do desenho. A pintura redefine assim os dias, nada se se pôr à parte. Por aqui não nascem museus.
Na pressa vertiginosa habitual, estava a receber as últimas correcções do poetradutor, que insistia, a cada uma, em explicar-me as razões e as raízes, quês e porquês. Exemplo seja a importância do «n», onde se esconde o eu daquela língua, ainda para mais em sonoridade escorregadia que pede ginástica da língua-orgão, para que possa acontecer a língua-sentido. O José Luiz, não sei se o disse já a propósito de Camões, vai conduzindo a nova língua para mares infindos e abissais. Contra tudo e alguns, os que insistem pouco inocentemente em chamar-lhe crioulo. «Como quase vítima de glotofagia, usuário e estudioso», diz ele, «sei bem o que está subjacente à designação ainda que se não tenha a consciência: O crioulo de Cabo Verde, língua natural dos cabo-verdianos nascidos em Cabo Verde e língua de herança de parte da grande diáspora designa-se cabo-verdiano ou língua cabo-verdiana. Crioulos todos são, como a língua românica de Portugal é um crioulo do latim. Crioulo de Cabo Verde, designa apenas uma família de língua, assim como a língua românica de Portugal também indica uma família de língua.”»

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Mão Dita e por dizer

João Paulo Cotrim, no Hoje Macau (21 Maio 2021)

«Horta Seca, Lisboa, quarta, 14 Abril
Abrimos as janelas de cada dia para nos queixarmos do tempo, assim ele nos fosse exterior. Portanto, tenho as minhas razões de queixa. Cada passo dado, cada gesto emitido, cada esforço, as ideias arrancadas pétala por pétala de uma flor por existir, tudo participa no coro de tragicomédia que traz à cena A Grande Avaliação. Sempre detestei exames, antes de perceber que passamos a vida na navalha da examinação. Talvez o momento e o movimento que atravessamos seja agravadamente mais de balanço por tanto conter de desequilíbrio.
Uma vez mais a pretexto de festival, no caso o 5L que se anuncia para Lisboa nos primeiros dias de Maio, depois da falsa partida de 2020, preparamos outros dois volumes da colecção Mão Dita. Nascida por lembrança e insistência do Luís [Carmelo], que acabou por criar a Nova Mimosa para dar resposta cabal às suas ânsias, pretendia ser versão portátil e laboratorial, ensaio súbito, recolha do volátil da voz alta, chamada para tema e trepidação. O grafismo, muito discutido com a Luísa Barreto sublinharia isso mesmo, com os dois pontos de arame e uma capa de intervenção plástica sem mancha de tipografia, sem guilhotinar as sobras que resultam da dobra dos cadernos.
Testámos logo limites com as 82 páginas do «Tratado», do Luís, que chegou a ser finalista do Prêmio Oceanos, com a erudita abordagem corsária dos grandes textos. «Nunca houve inveja do futuro/ na linguagem das aves […] Nunca houve passado/ na linguagem dos homens». O grande leitor enfrenta espelhos e fantasmas, desdobra paisagens e alinha as invenções. Fôlego assim talvez desminta as premissas, mas um laboratório pode ter correntes de ar…
Mais alinhado com as intenções, Felipe Benítez Reyes fez pequena antologia dos seus poemas que tinham partido ao encontro da sombra de Pessoa. A ela voltamos com a tradução para cabo-verdiano da Ode Marítima, pelo José Luiz Tavares – quem mais teria o atrevimento? –, ele que exilou o mar dos seus versos de ilhéu. «A, tudu kais é un sodadi di pedra!/ I óra ki naviu ta sai di kais/ I dirapenti ta odjadu ma abri un spasu/ Entri kais ku naviu/ Un angústia risenti, n ka sabe pamodi, ta toma na mi,/ Un nébua di sintimentu di tristeza». («Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!/ E quando o navio larga do cais/ E se repara de repente que se abriu um espaço/ Entre o cais e o navio,/ Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente,/ Uma névoa de sentimentos de tristeza».)»

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O cinturão invisível de Pessoa

Luís Carmelo, no Hoje Macau (4 Março 2021)

«Fernando Pessoa transformou o excessivo peso do passado numa metafísica feita de nuvens de bom tempo. Essa meia evaporação da história fez com que uma certa quantidade de mitos, espalhados em todas as direcções, se transformassem em metáforas de leitura universal. Um tal reequilíbrio não cabia na rigidez do antigo regime, mas floresceu uns cinquenta anos depois da morte do poeta que não foi apenas um poeta, mas um modo de nos lermos e de nos entendermos a nós próprios. A heteronímia serviu para mostrar que as soluções avançam por muitos carris ao mesmo tempo e que a estação de chegada, tal como todos os pontos de partida, são sempre espaços improváveis. Vivemos numa encruzilhada de proposições, em suma.  
Lembras-te do encontro, na Primavera de 1982, com August Willemsen, um dos grandes pioneiros das traduções de Pessoa, que teve lugar na biblioteca da universidade de Amesterdão, na altura a meia dúzia de metros da praça de Waterloo e da casa de Rembrandt (quando os turistas ainda rareavam). Comparando a Holanda com Portugal, ele disse-te uma frase que dificilmente esquecerás: “Nós naufragámos mas fomos apenas comerciantes, enquanto vocês naufragaram em Pessoa e com isso descobriram o mundo todo de uma só vez.”.  
Ofereceste-lhe o único livro que publicaras até então, intitulado O Fio de Prumo. Ele viu o título, sorriu, deu uma volta às estantes de poesia brasileira e apareceu-te com um livro homónimo na mão. Respiraste fundo, pois um homónimo não é propriamente um heterónimo. E concluíste que apenas existe aprendizagem, se se armar uma feira que consiga preencher a alma inteira. No fundo, foi o que Almada conseguiu com aquele quadro pintado ao ar livre em finais de Agosto de 1954: espelhar através do olhar de Fernando Pessoa um outro mundo diante daquele que nos é habitual, mas com um fio de prumo secreto a ligá-los (para que pudéssemos ver de fora aquilo que, ao mesmo tempo, somos e não somos, tal como a flecha e o dardo se entreolham sem quaisquer limites).»

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