«Em resumo, amigos: estava feliz. Para variar, durou pouco. Tive de regressar ao planeta onde vivo e deparar-me com o que por aqui anda. E o que aqui anda tende a tornar profética a célebre frase de Nelson Rodrigues: «O grande acontecimento do século foi a ascensão espantosa e fulminante do idiota». São coisas como esta que provam a verdade cirúrgica daquele grande cronista: um grupo de professores e académicos americanos quer retirar o ensino de Shakespeare dos currículos por considerarem que a sua obra não é compatível com a visão actual de raça, género, classe e sexualidade. Esta guerra contra o bardo inglês já é antiga, diga-se em abono da verdade. O crítico Harold Bloom esteve sozinho e de forma quase quixotesca a combater estes soldados das causas justas desde a década de 90 do século passado. Agora a investida regressou sob o pretexto de que o que Shakespeare escreveu é sobre “supremacia branca e colonização”. Este bando de iluminados agregados sob o nome #DisruptTexts exige que o conjunto da obra literária do poeta e dramaturgo – uma das mais espantosas e perenes conquistas da espécie humana – seja totalmente retirada ou, no melhor dos cenários, ensinada com textos amputados e acrescentados de notas críticas criadas para salvaguardar o contexto destes dias. O que já está a ser feito: o jornal Washington Times cita uma professora de Inglês que ensina a tragédia Coriolanus acompanhada de uma análise marxista; e uma outra docente que alerta os alunos para a “masculinidade tóxica” de Romeu e Julieta.»
«Ainda é cedo para alinhar perdas e ganhos, se os houve, no livro-desrazão desta pandemia. Na roubalheira generalizada de vidas e do viver roubou-me a possibilidade de acompanhar em documentário o fechar das portas da Campos Trindade. Conservarei muitas imagens em lugares e modos que ainda desconheço, no velho sentido de “nascer com”, o que ali se deu vezes sem conta no acanhado dos últimos anos. Ia chamar-se «44, Rua do Alecrim», celebrando a redondez dos quarenta e quatros anos de porta aberta. Apesar de ter sido por um triz, o filme não acontecerá, mas ninguém nos tira, a mim, ao Nuno [Miguel Guedes] e ao protagonista, Bernardo [Trindade], as longuíssimas conversas de namoro em torno do amor, que é como quem diz amizade. E dos fios ténues e consistentes com que se entretecem as famílias. Na apresentação que fizemos para convocar parcerias e boas-vontades, escrevíamos: «a pergunta que nos interessa, entre tantas possíveis, é esta: os livros são seres vivos? Existe quem ache que sim e faça disso prática e louvor. A história que se quer contar é um desses exemplos, onde o valor é mais importante do que o custo; onde o destino é de facto determinado mas por uma única lógica, avessa a mercantilismo ou ignorância. E essa lógica é a do coração misturado com o saber, combinação única e rara. Mas praticada. E com provas em papel e palavra.» Estou certo que arranjaremos maneira mais portátil de voltar ao assunto. É que «a história que queremos contar fala de vida. Do que fomos, do que somos e com sorte do que poderemos ser. E é por isso que a resposta à pergunta colocada é fácil: sim, os livros são seres vivos.» Voltámos pela última vez às salas vazias, agora enormes. Um destes dias a fachada completa ̶ nome, porta, montra, painel de azulejos ̶ será abrigada, com ironia, por mãos amantes de coleccionadores. Voltámos e forçámos a alegria de mudar de pele, que «o lugar dos livros não se esvai enquanto tiver por mapa um livreiro»:
uma livraria tem por objecto o roubo dos raios e relâmpagos a sala nua que nos despia não alcança nem sombra nem brilho
as palavras ecoaram dessabendo onde pousar no que iam dizendo saudades de quando no desarrumo os sentidos se desmultiplicavam
os amadores que costumavam reconhecer páginas e lugares como em casa ou no corpo desconheciam agora onde pôr as mãos sem arriscar largar os olhares uns dos outros derivavam à tona das areias movediças a tornar quadrados os metros medos
daqui só se sai vivo reaprendendo a deslizar sobre as páginas lágrimas»
«Acerca de «Remain in Light», só recentemente tive conhecimento de que a minha experiência com o disco foi muito similar à de um importante músico pop-rock norte-americano, mais conhecido como vocalista e mentor dos Nine Inch Nails, Trent Raznor. Numa entrevista em 2020, Raznor disse que «Remain in Light» era o melhor disco de sempre. Não apenas o melhor da década de 80, como escreve Louise Stanley – «Estou convicta de que “Remain in Light” é o melhor disco da década de 80.”» –, mas o melhor de sempre. Leia-se o que Raznor disse na entrevista, acerca daquele que é para ele o melhor disco de sempre da história da pop-rock: «Trata-se de um dico que não entendo quando o ouvi pela primeira vez, no início dos anos 80. Nessa altura, vivia numa pequena cidade do interior, sem quaisquer actividades culturais. E, vindo do nada, chega este disco. Uma obra de arte estranha, sintética, polirrítmica, com influências africanas, que me baralharam todo. […] O que acontece com bons discos quando os ouvimos pela primeira vez, como neste caso, é que nunca sabemos bem com o que estamos a lidar. Não temos medida de comparação. Mas ficamos fascinados por eles, e depois de o ouvirmos seis vezes o disco começa a revelar-se. À décima audição estamos completamente apanhados. Mas mesmo quando o ouves pela trigésima vez, descobres coisas novas. Foi com “Remain in Light” que aprendi tudo isto e o vivi pela primeira vez.» A experiência que Trent Raznor descreve é muito similar à minha, embora nem por um momento duvide de que ele escute melhor esse disco do que eu, pois não duvido que tenha melhor ouvido e saiba mais de música pop-rock do que eu, além de ter sido considerado imortal por David Bowie, que tinha grande admiração por Trent. Bowie e Raznor fizeram uma tournée juntos em finais de 1995 início de 1996 e também uma música e vídeos, «I’m Affraid of Americans». É muito provável que a musicalidade de Trent Raznor, e o encontro entre ambos, tenha escurecido o coração de Bowie para sempre. Podem assistir aqui a uma das canções dessa tournée «Reptile», dos Nine Inch Nails, ao vivo com David Bowie: https://www.youtube.com/watch?v=wJIJzmcc4MY. Ou ao concerto inteiro, aqui: https://www.youtube.com/watch?v=j4sP1CTuIjs. Curiosamente, ou talvez não, dez anos mais tarde Trent Raznor cantaria esta mesma canção, «Reptile» com Peter Murphy: https://www.youtube.com/watch?v=gvClJOA5lqA Esta breve viagem aos Nine Inch Nails e a David Bowie teve apenas como objectivo sublinhar a importância da escolha do quarto álbum dos Talking Heads como o melhor disco de sempre. Trent Raznor poderia ter escolhido um dos discos Bowie do período de Berlim, que ele tanto gosta, poe exemplo, mas escolheu «Remain in Light». Poderia ter escolhido algo mais obscuro, como a sua música ou aquela que usualmente ouve mais, mas escolheu um disco que é o oposto disso. O que tem este disco de tão especial afinal?»
«Luís Cardoso é um dos raros autores que tem Timor como berço e a sua profícua obra centra-se em temas como a memória, a identidade, a História. Todos os seus livros se interligam, inclusivamente, ora com referências explícitas ao autor e aos outros títulos, ora por episódios ou motivos que vão ressurgindo. Esta intertextualidade homoautoral, onde confluem ainda diversas outras referências exteriores à sua obra, serve como comprovação da existência de um mundo ficcional muito próprio, atestando a criação de um imaginário que efabula e recria toda uma geografia da alma. Quando lemos a sua obra e sobre a sua obra, fica aliás a sensação que partiu de Timor para começar a escrever sobre Timor. Nalgumas das suas obras, não se refere contudo ao cenário como sendo Timor. Em O Plantador de Abóboras, designa-se o reino de Manu-mutin (que podemos tomar como um local imaginário ou como sendo Manatuto) escondido algures no interior do país: «Uma terra oculta como tantas outras que foram descobertas.» (p. 95) O autor recorre constantemente a expressões e palavras do tétum, língua oficial timorense a par do português. Por exemplo, quando se refere malae-mutin para designar o europeu, e malae-metanque significa africano. A polifonia linguística está aliás presente noutros escritos do autor, como o seu conto Cáspita, onde se explica como o narrador cresce rodeado de várias línguas: o laclei, o mambae, o tétum, e por fim o latim… Em O Plantador de Abóboras, a narradora fala-nos da sua pronúncia que descreve como uma «estranha mistura» entre «mambae, tétum, português e o grasnar de um ganso» (p. 150). Na sua prosa, Luís Cardoso brinca constantemente com as palavras, reflectindo sobre elas, como acontece quando a narradora brinca com o uso do verbo escrutinar. Usa ainda refrões que marcam uma cadência muito própria no romance (e que recordam a escrita de António Lobo Antunes). A própria estrutura do romance é circular, feita de recorrências, repetições, avanços e recuos. É muito curiosa, e um dos aspectos mais fortes da sua obra, a forma como o autor se desdobra nos seus escritos em narrador ou em personagem. Nesta obra, especificamente, a narradora é uma mulher (como já acontecia em Olhos de Coruja, Olhos de Gato Bravo). E mais perto do final percebemos que o narratário é um jovem seminarista que tencionava estudar Agronomia em Portugal, sonho esse interrompido pela guerra. A intertextualidade está presente ao longo do livro, como aliás acontece frequentemente na sua obra. Se, por um lado, o próprio subtítulo do livro é Sonata para uma neblina, por outro lado, a sua estrutura tripartida (do Primeiro ao Terceiro Andamento) apontam para uma sinfonia. Da literatura à música (por exemplo, com a música Que sera, serana voz de Doris Day), encontramos diversos ecos da comprovação da existência de todo um mundo alternativo e paralelo ao mundo empírico, o da arte. Mas é a primeira vez que num livro do autor se incorre na pintura, pois a nossa protagonista e narradora pinta. Ainda mais num diálogo surpreendente com a belíssima capa e as ilustrações a cores de Ana Jacinto Nunes, que tanto enriquecem este livro. Ainda a propósito da intertextualidade temos a forte presença do Dom Quixote, citado em várias passagens no original castelhano. O narratário, que se faz acompanhar permanentemente desse livro, é aliás apelidado de Sancho Pança pela narradora: «Faltava-lhe o arrojo e a loucura de Don Quijote» (p. 153).»
«Felizmente, temos conseguido controlar (com muitos sacrifícios a vários níveis) a taxa de mortalidade – com algumas excepções muito pouco felizes, como foi o caso deste Janeiro. Mas subsiste a sensação de que a morte – apesar de todas as medidas, apesar das benfazejas vacinas – está à espreita, à espera de um descuido, de uma distracção de principiante, do momento em que ousamos vir à tona reclamar o quinhão de oxigénio a que estávamos habituados. De um ponto de vista objectivo – eu de fora, com os óculos da ciência disponível postos, a olhar para mim próprio – sei que não faço parte de um grupo de risco acrescido. Em princípio, se o bicho resolver fazer de mim turismo, sobreviverei. Mas se em Março do ano passado, quando o confinamento era sinónimo de incerteza e de pavor, eu conhecia apenas duas pessoas que tinham adoecido com o vírus – e que nem sequer moravam em Portugal (olá Ana, olá Carlos, sintam-se bem-vindos a este texto) – e que dele recuperam sem qualquer mazela subsequente, neste momento conheço muito mais gente que adoeceu – e recuperou – e também gente que morreu. A morte em jeito de estatística no telejornal da noite, vociferada pelo apresentador de serviço como se de um anúncio bíblico se tratasse, não me tira propriamente o sono; há muito tempo que a minha relação com a televisão e os seus mecanismos de predação afectiva é praticamente inexistente. Evito-a como quem se escusa à companhia de uma pessoa desonesta. Mas não há como evitar o pesar por aqueles de quem sabíamos os nomes, ou aqueles que são os pais, os tios ou os avós das pessoas da nossa congregação de vivências. São esses que dão à cara à estatística anónima que alimenta os noticiários. Lá fora cheira à morte. E, de repente, e por mais que se insista em abandonar a vida à soleira da porta enquanto ela não resolver se portar bem, a vida, como as ervas que rebentam na fenda de uma rocha num assomo de tenacidade, a vida acontece. Sem avisos, sem reservas, sem máscaras: ela segue-nos para onde quer que vamos.»
«Esta quarta-feira foram revelados os 11 finalistas ao Prémio Literário Casino da Póvoa no valor de 20 mil euros. O nome do vencedor será conhecido no decorrer do festival que este ano acontece dias 26 e 27 de fevereiro, num formato condensado, através da internet. A concurso estiveram 70 livros de poesia. O júri, constituído pelo poeta Daniel Jonas, os escritores Inês Pedrosa e José António Gomes, o jornalista Luís Caetano e a artista plástica e autora Marta Bernardes deu a conhecer as suas escolhas. »
« “Orwell foi bem sucedido porque escreveu precisamente os livros certos no momento certo. A sua descrição de uma contingência histórica particular foi, assim se verificou, precisamente aquilo que era necessário para representar uma diferença para o futuro da política liberal. Quebrou o poder daquilo a que Nabokov gostava de chamar “propaganda bolchevique” sobre a mente dos intelectuais liberais em Inglaterra e na América. Com isso colocou-nos 20 anos adiante dos nossos correligionários franceses.”. Em primeiro lugar, clarifique-se o facto de a palavra “liberal” ser aqui empregue na acepção de democracia, ou melhor, de “democracia liberal”, tal como a entendemos hoje. Em segundo lugar, Rorty quis significar por “degraus da história” esta visão subliminarmente axial que entende poder “estar-se adiante” ou “atrás” na compreensão de algo (como se a história tivesse um ‘plot’ que caminharia para uma redenção, fosse ela qual fosse). Em terceiro lugar, entendendo profundamente a razão de Rorty, quero crer que a alegoria de Orwell analisada tem um cariz trans-histórico que suplanta a época de enunciação e as suas mais imediatas referências. Richard Rorty refere-se, claro está, a Animal Farm (1945) e aos primeiros dois terços de 1984 (obra publicada em 1949 e cujo primeiro título foi sintomaticamente The Last Man in Europe), já que o último terço do romance, depois de Winston e Júlia irem para o apartamento de O’Brien, torna-se – tal como o autor enfatiza e bem – num livro sobre O’Brien, deixando de se constituir como alegoria exclusiva da tentação totalitária do século XX. Seja como for, o que se nota desta disposição crítica de Orwell é que o foco crítico acaba, ele mesmo, por depender, em grande parte, da época em que o juízo se explicita. Repare-se: as duas primeiras partes de Contingência, Ironia e Solidariedade foram escritas nos anos de 1986 e 1987 (na sua origem foram “Lectures”), tendo a última parte, onde surge a análise de Orwell, sido redigida posteriormente (mas seguramente antes de 1989, data da publicação da obra). O que nos aponta para uma redacção que terá tido lugar no final da década das grandes modificações, no centro e na iminência do xeque-mate mais importante do século passado: a queda do muro de Berlim e a emergência da nova era tecnológica, permeável ao fim dos dogmas e ao esvair da “História” como caminhada inelutável e de tectos inevitavelmente progressivos.»
«Percebam: a irritação que tenho com esta quadra é já antiga e forte demais para a conseguir ignorar, até em numa época estranha como a que vivemos. Este “adeus à carne” (do latim tardio carne vale e que alegadamente é a etimologia da palavra) e que antecipa por excesso a austeridade da Quaresma nunca me interessou. A razão é simples: não consigo compreender uma selecção de dias em que a maior ambição da Humanidade é obrigar-se a estar alegre e mascarado de minhota. Mesmo em criança aderia à coisa de forma resignada para que os meus pares continuassem a considerar-me. Infelizmente as provas fotográficas desta afirmação ainda existem e foi sem surpresa que redescobri o Zorro mais melancólico de sempre ou o cowboy com o maior tédio a oeste de Pecos. Escusam de vir com explicações religiosas ou antropológicas do fenómeno: estou-me nas tintas mas aparentemente não o suficiente. Talvez se vivesse num país onde a tradição carnavalesca fosse forte e ansiada, como é o caso do Brasil. Mas não: vivo num país onde o Carnaval consiste em recriar o sambódromo sob temperaturas abaixo dos 10ºC, enquanto a genuína Escola de Samba Bota-Aí-No-Cangaço da Bairrada de Baixo executa as suas tiritantes coreografias. Não me levem a mal: eu respeito quem gosta e pratica. Tenho muitos amigos (olá, Alcobaça!) que fazem desta data magníficas super-produções de disfarces e alegria durante dias sem dormir. Quase que tenho inveja. Mas não tenho.»
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