«Não terá sido sonho, dos de acender vigílias, menos ainda pesadelo, dos de pesarem na respiração. Foi só vaga ideia, discutida ainda assim naquela base do tóxico «e se?», que logo tende a transformar-se em pueril «não és homem não és nada!». Passados tantos anos quase dói esta relembrança. Era para ser jornal impresso de distribuição gratuita sobre a internet, mais carta de navegação que outra coisa qualquer, um diagrama em progresso, quanto muito manual de instruções ou relato de viagens. Desvantagens de nativo da floresta de fibras do papel em caçada aos pixeis. Como fixar o movediço? Ou melhor, para quê? Desconfiança do imaterial, talvez. Fascínio por mapas, com certeza. Nestes dias de nojo habitável, se custa aguentar as jeremíadas dos clássicos-médios abrigados e alimentados e ligados pela tomada do umbigo, também se encontram nos territórios do entrelaçamento motivos de alegria.»
«As palavras foram as fiéis companheiras da vida de Fernanda Botelho, com as quais ousou “procurar a quadratura do círculo ou a pedra filosofal”. No decurso da sua jornada, a autora encontrou o tesouro do léxico português e um estilo literário singular repleto de jogos de palavras, aliterações e “divertidos pensamentos aforísticos”. Seja o tema a metafísica, a eutanásia ou o Big Show SIC, as palavras da escritora bailam elegantemente sob os holofotes dos textos que compõem “Gritos da Minha Dança”. Fernanda Botelho definiu o seu derradeiro livro como um conjunto de “reflexões de uma septuagenária ímpia escritas antes de súbita e suspeita morte”. Contudo, esta antologia assume um propósito de maior relevo, pois apresenta a ponderação e lucidez de quem traz ao palco, por uma última vez, uma extraordinária coreografia.»
«A rede inventou um novo modo de ‘morrer e nascer ao mesmo tempo’, como se com isso tivéssemos fundido a metempsicose platónica às redenções do Ganges com um tipo de instantaneidade que hoje brilha de modo natural no instinto das nossas crianças. Em segundo lugar, porque a febre da actualização (o deslumbre do ‘refresh on-off’) já se tornou numa aprendizagem que nos diz que um corpo só é de facto um corpo, se estiver sempre conectado com a rede. Esta reinvenção da vida que se baseia no ‘update’ permanente afasta-nos das tradições melancólicas, pois passamos o tempo a nadar nas vagas do presente como se nada mais existisse. A tradição da melancolia sempre se associou a um tipo de “História” – ou a um conjunto de narrativas –, cujo significado irradiava do passado por razões míticas, canónicas ou de domesticação moderna do tempo. Contudo, nas últimas décadas, esse tipo de narrativas estáticas – que me educaram na escola e fora dela – foram perdendo as suas estruturas subjacentes, os seus centros e a sua territorialidade imperial. A supremacia do ‘Agora’ passou a governar todas as novas melancolias, convertendo-as numa doce ansiedade que apenas se conforma ao teclar ou ao deslizar com o dedo sobre os ecrãs. Já não existe hoje a melancolia que se estruturava em objectos fixos (na Carta medieval do Pseudo-Hipócrates, a bílis era ainda o humor da melancolia), tendo esta dado origem a uma outra que se dilui na exaltação das interacções e na acelerada ‘desreferenciação’ da vida e do quotidiano. Quando penso neste tipo de efeitos que decorrem da nossa ininterrupta ligação à rede, ocorre-me quase sempre Maurice Blanchot, no momento em que, possuído por uma espécie de desespero apocalíptico, se pôs a imaginar o último escritor sobre a terra (o autor referia-se ao escritor, enquanto figura pós-romântica que encarnaria um deus a passear-se para sempre nas arenas do espaço público). Quase no final de Le livre à venir (Gallimard, 1959), Blanchot colocou em cena a morte do último escritor e questionou, alarmado: o que resultaria de um tal facto? A resposta, umas linhas à frente, era clara: “Apparemment un grand silence”. É uma daquelas frases de que me lembro muitas vezes.»
«Feliz com o resultado da minha expedição dirigi-me à jovem encarregada da livraria, que ao ver a biografia que eu levava confirmou que aquele exemplar tinha sido salvo da guilhotina. Mas depois, depois: a rapariga – que não teria mais de 30 anos – pega no livro, demora-se a olhá-lo com um de forma quase apaixonada e diz-me num suspiro: «Ah…O que nós precisávamos agora era de um Churchill». Achei extraordinário e fiquei sem palavras, limitando-me a sorrir e pagar. Mas regressei a casa a pensar: um Churchill porquê, para quê? Por mais que admire o homem nas suas gloriosas imperfeições e lhe esteja eternamente grato pelo legado de liberdade que nos deixou não consegui encaixar a necessidade premente de ressuscitar o estadista. Quer dizer: pelo menos é um gigantesco passo em frente em relação ao antigo chorrilho ouvido nos táxis que pedia o regresso urgente de Salazar para “pôr ordem nisto”. Mas duvido que Sir Winston se desse bem com os dias de agora.»
«Ao que parece, existe em papel e tudo a versão polaca de «Salazar, Agora na hora da sua morte», novela de sombras e fogos-fátuos que compus com o querido Miguel [Rocha], de quem tenho imensas saudades, avivadas agora com estes trânsitos. Ninguém como ele extrai dos cardos matéria de nos encher de alegria. O objecto, que atravessa uma Europa a passo de caracol, está a ter fortuna crítica, dizem. A ponto de suscitar viagens que parecem o horizonte: quanto mais nos aproximamos, mais elas se afastam. O que chegou, entretanto, foi a altura de reeditarmos esta ida com volta ao esqueleto do armário, isto é, às ossadas do fantasma que se imaginou nação. Pensou-se encarnação de país, mas estava só com a sua arrumadinha esterilidade. Aquela nossa visão encheu-se de cadeiras de todas as formas e feitios. O poder não conhece descanso, apenas desânimo.»
«Sara não conseguia imaginar a sua vida ligada a um homem. Viver para servi-lo, para lhe ser fiel, para tomar conta de uma casa, de uma família. Ver um homem chegar ao fim do dia a casa como se fosse um altar que ganhara vida. Nessa noite, ao jantar, resolveu enfrentar o pai. Pousou dramaticamente os talhares, pediu que lhe prestasse muita atenção e disse: “Para que quer que eu continue a mentira, pai? Porque quer fazer com que eu diga que vou ser fiel para sempre e ter filhos que continuem este modo de vida, que é uma irrealidade que todos à nossa volta teimam em proteger? Porque quer que eu faça isso? Não vê que não conseguirei viver assim? Eu não preciso de um homem para viver, pai, mas preciso de ler.” Contrariamente ao que Sara esperava, o pai sorriu e olhou-a fixamente nos olhos, antes de começar a falar: “Diz-me uma verdade e podes fazer o que quiseres. Uma só, que se segure à chuva e ao sol, à passagem do tempo. Não vês que não nos resta nada a não ser a mentira? Não há uma única casa que não tenha sido erigida com mentiras, Sara! São elas que fizeram as paredes, os telhados, as cercas que delimitam o que é de cada um. Foram as mentiras que delimitaram as fronteiras dos estados e deste país. Achas que tudo isso é verdade? Há alguma verdade nisto? E achas que há mais verdade nos livros de que tanto gostas do que numa casa?” Parou de falar. Segurou os talhares para continuar a jantar, mas ainda antes de o fazer, e balançando a faca e o garfo, como se dirigisse uma grande orquestra, disse: “Casar com um homem rico, que te proporcionará tudo o que desejares e até coisas que não sabes que existem, não me parece que seja o pior que te possa querer. Se nada é verdade, minha filha, agarra na melhor mentira que puderes.” Quando se levantou da mesa, apesar de não ter entendido o pai, Sara sentia um medo desconhecido, como se a vida lhe tivesse revelado um segredo. Ainda antes de abandonar a sala de jantar, ouviu o pai dizer: “E ainda hás-de me dizer porque é que os livros são melhores que um homem para a tua vida! Achas que são palavras que te vão fazer feliz?” Era mais um furo no barco de certezas de Sara. Retirava-se ainda mais abalada. »
«Em Março do ano passado escrevia aqui nesta coluna que estes momentos de crise acabam por ser uma espécie de janela e de espelho. Uma janela no sentido em que cada um de nós assiste ao outro revelando-se – como o conhecíamos ou como nunca imaginamos que seria – e assiste – mais ou menos satisfeito com o resultado – à sua própria revelação. Uma coisa é a ética em conversa de café; outra, muito diferente, é como cada um de nós reage numa situação excepcional. Somos capazes dos mais desobrigados sacrifícios e do mais abjecto egoísmo. A história é uma sucessão de homens que, perante a adversidade, cresceram ou mirraram. O que tem vindo a lume, porém, são maioritariamente histórias do pequeno abuso de poder tão costumeiro em Portugal. Autarcas cujo ego não cabe no reflexo do espelho, convencidos que estão isentos do cumprimento das regras do jogo democrático; pequenos dirigentes intermédios de organismos públicos habituados a levar resmas de papel do escritório para casa a colocarem na lista dos vacinados prioritários mulher, filhos, sogra e periquito; a malta rés-do-chão da hierarquia logística cujos dedos pegajosos alimentam diariamente a estatística do desperdício nos serviços públicos a desviarem aquilo que podem, vacinas incluídas. Portugal em dois vocábulos: desenrascanço e jeitinho.»
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