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Culpa ensolarada

Valério Romão no Hoje Macau (5 Junho 2021)

«Lembro-me perfeitamente da primeira vez que senti um ataque de pânico. Tinha acabado de subir os três andares do prédio da minha namorada e na parte comum do andar desenhava-se uma espécie de óculo oval que dava para ao exterior. Lembro-me de me encostar ao pequeno muro e olhar pelo vão, lá para baixo, fixamente, e de me ocorrer a ideia de que afinal talvez fosse melhor estar morto do que estar vivo. Desatei num pranto, solucei, tive a sensação de, como um peixe, me estar a afogar em terra. Um ataque de pânico é como ter a morte a bater à porta; quando finalmente atendemos, não está lá ninguém.

Nos dias seguintes fiz uma espécie de curso intensivo da doença mental. Na minha família toda a gente tem uma componente ansiogénica e depressiva acentuada. Cada um deles, da minha mãe às minhas irmãs, se apressou a dar-me dicas de como controlar a respiração, de o que fazer acaso o fenómeno ocorresse no trabalho ou nas aulas (eu tinha, à altura, dezoito anos), de o que tomar e como. Cada um deles me trazia, em segredo, na concha da mão, uma lamela da sua droga preferida e indicações passadas em surdina: «quando isso começar a dar-te, metes dois destes debaixo da língua, corres para a casa de banho e encharcas o rosto em água até ficares mais calmo». Senti-me como se tivesse nascido para aquela família pela segunda vez. Ou como numa espécie de crisma para maluquinhos.

Pese a boa vontade de todos eles, a coisa não melhorou muito. Eu, que tinha assistido boa parte da minha vida ao deglutir desesperado das minhas irmãs e mãe de todo o tipo de calmantes e antidepressivos sem grandes melhorias evidentes, estava céptico em relação aos benefícios reais da medicação. Os psiquiatras e psicólogos também não eram figuras pelas quais nutrisse grande estima. Enfim, para além da solidão em que um sujeito se enfia quando se descobre diferente (seja que diferença for) acrescentava-se ainda a desconfiança em relação à eficácia ou bondade de tudo quanto de algum modo podia mitigar essa diferença ou a solidão que dela decorria.»

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A miúda mais bonita da turma

Valério Romão no Hoje Macau (28 Maio 2021)

«Quando a Luísa, provavelmente a miúda mais bonita da turma, meteu conversa comigo acerca do quão violentos os rapazes podiam ser nas suas brincadeiras, senti-me, pela primeira vez na vida, especial. Outra humanidade, à margem dos penteados decalcados da Bravo e das calças da Chevignon, era possível. Eu sempre achara que a Luísa, a interessar-se por alguém, iria naturalmente sucumbir ao charme do Ivan, um latagão magríssimo de metro e setenta (eu olhava para ele de baixo para cima sem nunca ousar dirigir-lhe uma palavra) com um mullet cujos caracóis loiros faziam inveja a qualquer querubim do renascimento. Eles eram o par perfeito. Com o seu aspecto irrepreensivelmente nórdico, contrastavam de tal modo com o nosso ar marroquino de algarvios queimados do sol que não acabarem juntos era uma ideia que roçava o pecado.
Quando a Luísa me convidou para ir ao cinema com ela, ver o Robocop, devo ter demorado uns bons dois minutos até lhe dizer, muito baixinho, que sim. Já era difícil acreditar que a Luísa pudesse achar em mim qualquer interesse que justificasse uma troca breve de palavras, mas convidar-me para o cinema tinha laivos de história para um daqueles defuntos jornais de notícias do bizarro e do além. Pedi emprestado umas calças de fato de treino a um amigo mais atreito à questão da moda e aperaltei-me com pude. Duas gotas do Old Spice do meu pai atrás das orelhas completaram a minha transformação. Às 19:15 estava à porta do café na baixa onde tínhamos combinado encontrar-nos. Era verão e a íamos à sessão das 20:30, pelo que pelas minhas contas, a nervoseira resultante de uma hora a tentar não fazer figuras de urso diante da Luísa dava para ensopar duas vezes a roupa impecavelmente passada a ferro que vestia naquele dia.
Passou-se o tempo, muito devagar, e a Luísa não apareceu. Tão desanimado quanto estranhamente aliviado, dirigi-me para o cinema. Era o universo a retomar o seu curso natural, pensei. Na bilheteira, vejo a Luísa e ainda pensei em gritar-lhe do outro lado da rua. Ainda bem que não o fiz. Ela estava com o Ivan. Ele, naturalmente imune ao embaraço, não parava de lhe contar o que eu imaginava serem, pelo riso dela, as melhores piadas do mundo. Eu, por dentro, desmoronei de amores pela primeira vez.»

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Temos de falar sobre isto

Valério Romão no Hoje Macau (24 Maio 2021)

«Quando a medicina capitula, consciente dos seus limites tecnológicos e éticos (sim, há uma ética em comunicar o fim, uma ética sobre a qual se funda, aliás, todo o edifício do que deve ser o comportamento adequado de um médico) entra então sorrateiramente a chamada «terapia alternativa». Normalmente, não promete a cura. Regra geral, as terapias alternativas são astutas em relação ao que oferecem (até porque a única coisa que têm, de facto, para oferecer, está do lado do paciente e reside na capacidade que este tem de ser sugestionado). Não podem oferecer uma cura, pelo menos ao modo da medicina, porque não a têm. Pelo que têm de percorrer caminhos tão alternativos como o adjectivo que as qualifica. Na maior parte das vezes, dizem-se preventivas: nesse aspecto são uma espécie de «medicina» no sentido grego da palavra: uma forma de vida cujo objectivo fundamental é preservar a saúde e impedir a doença. Mas quem muitas vezes lá chega já está para lá desse pináculo. Precisa de soluções. Não podendo prometer curar o cancro (e, ainda assim, alguns têm o descaramento moral de o fazer, sendo essa forma de exploração da fragilidade alheia um dos rostos mais asquerosos da ganância humana) advogam toda uma panóplia de mezinhas para «tornar a vida mais confortável», «ajudar com os efeitos secundários», «lidar com a dor» e, com alguma esperança (quase sempre albardada no lombo do paciente que «tem de ter fé no poder se curar!», recaindo sobre este o motivo do sucesso ou insucesso da terapia), «prolongar a vida» ou mesmo «ousar o milagre», coisa que dizem quase em surdina, acendendo assim uma luzinha na consciência do desesperado sem se comprometerem em demasia.»

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Os homens que abrem caminho

Valério Romão, no Hoje Macau (14 Maio 2021)

«Quando o meu pai morreu, eu tinha acabado de experimentar a adolescência na sua componente de excessos irresponsáveis. Era quarta-feira de cinzas e eu estava de ressaca. Tinha saído na sexta, no sábado, na segunda e na terça e em cada um desses dias eu tinha bebido mais do aquilo a que estava habituado. Pela primeira vez na minha vida, tinha contacto, ainda que muito difusamente, com o conceito de ressaca. Pela primeira vez na minha vida, percebia o significado de «dia seguinte».
O meu pai morreu em casa, nos meus braços. Demasiado repentino, demasiado cedo. Tínhamos finalmente descoberto o filão de uma linguagem comum. Já não passávamos um pelo outro no corredor como dois estranhos que se cruzam numa estação de comboios. Vê-lo partir assim, antes de ser possível recuperar as centenas de abraços que não demos e todas as ideias que não trocamos, arrancou um bom pedaço de mim. O edifício não cai apenas porque se vota parte dele ao abandono e se cola o restante com cuspo.
Há uns dias morreu-me um amigo, o Cândido. Tive a sorte de conhecer e o azar de não o ter conhecido há muito mais tempo. Era um homem maior do que o corpo que habitava (e não era nada pobre em corpo, diga-se de passagem) e morreu cedo. Teve a sageza de privilegiar sempre na sua vida a generosidade e o acto de distribuir o que fosse com as mãos abertas em flor. Era uma espécie de líder tribal que conseguia congregar à sua volta novos e velhos, família e amigos, conhecidos e desconhecidos com uma autoridade natural que decorria de uma espécie de budismo heterodoxo, súmula escolhida a dedo daquilo que a vida lhe tinha posto diante em cada momento. Actor portentoso, talvez a Comunidade do Pacheco tenha sido o texto que mais prazer lhe deu levar a cena. Não por acaso: se há uma palavra que o Cândido abraçaria com aqueles braços capazes de envolver o mundo e o levar ao peito seria essa mesmo. Comunidade.»

Natacha Cardoso/Global Imagens
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Da Infância

Valério Romão no Hoje Macau (16 Abril 2021)

«Ser-se muito bom aluno não ajuda a fazer amigos. Ser-se muito bom aluno e imigrante é a garantia de que nunca se será convidado para uma festa de aniversário, que nunca se entrará na casa de um dos colegas de turma, que nunca se será seleccionado para um jogo qualquer no intervalo das aulas. A infância, despida ainda do verniz civilizacional que nos torna relativamente toleráveis e tolerantes, é a altura da vida em que um sujeito arranja cicatrizes que se entretém a lamber até ao fim dos dias. Os putos, capazes do melhor e do pior, conseguem ser extremamente cruéis de modo absolutamente gratuito.
O meu pai matriculou-me num colégio de freiras. Como já estava em Clermont-Ferrand há alguns anos e tivera contacto privilegiado com os resultados do ensino público, decidiu esticar tanto quanto possível os cordões à bolsa e proporcionar-me uma educação privilegiada. Eram poucos os filhos de imigrantes na minha escola. Os nativos – os legítimos – já achavam a minha presença pouco condizente com aquilo que era esperado de mim, enquanto filho de imigrantes pobres, em França. Ser bom aluno era apenas acrescentar insulto à injúria. Os filhos dos emigrantes portugueses eram conhecidos em França – com mais ou menos justiça na composição do retrato – por serem uns rufias semi-abrutalhados com apetite precoce por vinho tinto. Os seus pais eram homens e mulheres atarracados, com modos campestres, que resolviam desavenças de vizinhança de machado em punho. Nem eu nem os meus pais correspondíamos ao retrato-robô.
Não me foi difícil escolher entre ficar em França ou regressar a Portugal quando o meu pai me propôs, aos 10 anos, essa escolha (note-se que «regressar» nesse sentido era um conceito vagamente metafísico – como regressar quando nunca foi a casa o sítio para onde se «regressa»?). Nada tenho contra os franceses, muito menos contra os miúdos que, à altura, apenas estavam a ser o que são os miúdos um pouco por todo o lado. Mas eu era tremendamente infeliz em França. Tão infeliz que sair dali para Portugal e chamar-lhe regresso ou para qualquer outro sítio era irresistível.
Que guardo de bom? O sabor das galettes na padaria perto de nós; alguns gestos esparsos mas importantes de amizade e de carinho; a forma como alguns professores olhavam para mim e que me enchia de orgulho e acendia alguma esperança.»

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Depois de grande

Valério Romão no Hoje Macau (8 Abril 2021)

«O meu Guilherme vai fazer dezoito anos em Setembro. Não fala. Não consegue abrir a porta de um armário para roubar um pacote de bolachas. Não sabe limpar o rabo depois de ir à casa de banho. Não consegue dizer se lhe dói alguma coisa ou onde lhe dói. Tende a meter tudo quanto é migalhinha à boca (uma condição chamada «pica»).
Nunca beijou uma rapariga (ou um rapaz). Não gosta de desenhar, de colorir, de fazer puzzles ou legos, de brincar com outras crianças (ou não sabe). Tudo quanto gosta de fazer é de ver desenhos animados na televisão ou no telemóvel. É surpreendentemente ágil a deambular nos seus vídeos preferidos do Youtube e nesse aspecto maneja um telemóvel com a desenvoltura expectável para um adolescente da sua idade.
No próximo ano ou no seguinte deixa de ir para a escola (que funciona, para um autista com as suas limitações, mais como um centro de terapia ocupacional do que qualquer outra coisa). Não sabemos bem o que fazer com ele depois disso. Ninguém sabe. Os apoios aos autistas vão sobretudo no sentido de recuperá-los para uma vida tão normal quanto possível na maioridade. O investimento social e público pára por aí. Percebe-se.»

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Da Certeza

Valério Romão, no Hoje Macau (26 Março 2021)

«O que não se percebe de todo é a razão pela qual uma panóplia de criaturas descendentes do bas-fond das ideias dos anos setenta (os newagers encravados entre o regresso de uma Índia em regime de pousada na praia e a incapacidade de dissiparem os efeitos do excesso de drogaria psicadélica consumida) se convence de que o amor (em forma de apego indespedível, como enunciado) que sentem por determinada tolice converte automaticamente essa tolice em algo com valor epistemológico. Não, o tarô não tem qualquer valor de verdade; a homeopatia não é uma alternativa à medicina (o que esta pandemia demonstrou amplamente, para quem ainda tinha dúvidas); os cristais são apenas composições da natureza e não portais para qualquer tipo de realidade vibrando ao lado da nossa; o teu interesse por medicina tradicional chinesa não te converte em médico de porra nenhuma – quando estiveres doente a sério nada do que estudaste te ajudará; não há conspiração 5G para te infectar o cérebro com o que quer que seja – para além de já toda a gente que quer saber por onde e o que fazes o saber, por conta do telemóvel através do qual lutas todos os dias contra o capitalismo e a opressão – ninguém quer saber do teu cérebro ou de ti. És apenas um átomo na constelação de big data através da qual o marketing poderá caminhar uns degraus em direcção ao panteão das ciências exactas. Não és especial. Quase ninguém o é. Respira e abre mão das tolices em que encontraste refúgio ou, pelo menos, admite a sua natureza epistemológica: no melhor dos casos, são apenas um jogo onde te distrais e vais aliviando o peso dos dias. Não curam ninguém, nunca o fizeram. Deixa-te de merdas.»

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Daqui para ali

Valério Romão, no Hoje Macau (19 Março 2021)

«A ideia de mudar de casa, em Lisboa, sempre se me afigurou como um pesadelo. Além das complicações normais decorrentes de uma mudança – o transporte, o reequacionar de mobiliário e pertences, os livros que NUNCA cabem em lugar nenhum – há a questão não despicienda da inflação galopante no mercado de arrendamento. Uma pessoa faz um contrato e passados três meses apenas já se sente afortunada por estar a pagar um valor que no momento da assinatura contratual lhe parecia abusivo. A pandemia, se alguma coisa de bom teve, foi a devolver alguma sensatez – ainda que parcelar e naturalmente transitória – a um mercado cujo fervilhar hormonal prometia enviar todos os remediados para a orla mais distante da subúrbia.
Como se costuma dizer, há males que vêm para bem. Consegui encontrar uma casa – que uma amiga minha arrendava até no final do ano passado comprar uma casa bem longe de Lisboa, visto que não lhe apetecia continuar a pagar para estar num parque de diversões de usufruto alheio – muito perto daquela onde estava, a preços razoavelmente humanos e, para meu grande contentamento inesperado, com um pequeno mas glorioso terraço por onde o sol vagueia à tarde e de onde se vê Lisboa a namorar com o tejo. Uma casa em Lisboa a preços comportáveis é um achado; uma casa com terraço e vista devia ser passível de entrar no registo testamentário de bens legáveis a família ou amigos em registo de direito preferencial de opção.
Claro que nem tudo é maravilhoso. A casa é último andar, os tectos são baixos e há zonas esconsas onde já deixei algum escalpe. Termicamente, é muito mais agreste do que o meu primeiro andar antigo generosamente ensanduichado entre dois pisos. O problema maior, no entanto, é o facto de as divisórias entre andares serem tão finas que consigo ouvir tudo quanto a minha vizinha de baixo faz em casa. É uma espécie de janela indiscreta sobre a vida alheia na modalidade auditiva.»

P9P6EB Lisbon View
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Coisas de tempo e de lua

Valério Romão, no Hoje Macau (12 Março 2021)

«De repente, o passado. Para um miúdo que crescera em França, bastião de primeiro mundo orgulhosamente tecnológico, a casa dos meus avós tinha tanto de fascinante como de assustador; faltavam-lhe interruptores, televisão e demais impulsos digitais tranquilizadores.
Quando ia dormir, soterrado por camadas infindáveis de mantas ásperas (dias de infernal calor, quarenta graus de um sol capaz de chamuscar a orla do inferno, noites gélidas em que a geada, mesmo no Verão, queimava as folhas mais frágeis), a minha avó vinha apagar a lamparina e aconchegar-me no seu algarvio indisfarçável «drome filho, drome». Eu passava imenso tempo a tentar perceber de onde vinham os ruídos que me acompanhariam noite fora e que, na minha cabeça, pertenciam a criaturas muito mais fantásticas do que os mochos e insectos de onde me afiançavam originar.
Certa noite mais amena, estava eu e o meu avô no alpendre, a olhar para aquele céu estrelado que acontece somente nos sítios onde a civilização rareia, comentei, apontando para a lua «já viste, avô, é incrível já termos ido lá, não é?», ao que o meu avó me respondeu, como se eu fosse meio atrasado «lá onde, filho?», «à lua, avô, Neil Armstrong e os outros dois, uma das maiores aventuras da história dos homens», e o meu avô, cada vez mais convencido de que eu tinha um problema qualquer, «ó filho, mas tu acreditas em tudo o que te dizem», prosseguiu, entre o paternalista e o preocupado, «já viste o tamanho da lua, como é que achas que alguém podia ir para lá? E fazer o quê?», «é maior do que parece daqui», comentei, «na verdade é grande o suficiente para construir cidades. Um dia até poderemos viver lá. Nós não, mas no futuro…», «ó filho», continuou ele, desanimado, «tens de ter cuidado com o que te dizem. Há gente muito má por aí. E tu és novo. Cautela.»»

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Está quase, já passou

Valério Romão no Hoje Macau (26 Fevereiro 2021)

«Quando vivia em França, com os meus pais, uma boa parte da infância, numa cidade do interior ladeando uma cordilheira de vulcões dormentes – Clermont-Ferrand – onde o clima era particularmente inclemente – Invernos nevosos e Verões infernais, a Primavera, muitas vezes tardando em aparecer até despontar, tímida, nos últimos dias de Março, como se tivesse prurido em chegar, era a única altura da vida da cidade em que o corpo parecia estar em sintonia com o ambiente.
Eu estava sempre doente no Inverno, amiúde no Outono, e calhavam-me sempre pelo menos duas sessões de amigdalite no Verão. Na Primavera descobria o que era ser como os outros miúdos – sempre muito mais robustos do que eu. Na Primavera éramos todos imortais. Na Primavera o meu pai atrevia-se a tirar-me da segurança de casa aos fins-de-semana para fazermos piqueniques à beira-rio com a trupe de emigrantes com que partilhávamos pão e histórias da terrinha. Íamos pescar trutas – de que eu fingia gostar à mesa mais do que na verdade gostava –, ver a procissão dos bichos a caminho das múltiplas peripécias da vida (isto é um gaio, filho, isto é uma lebre, vês como têm as pernas muito mais longas do que as dos coelhos, isto é…), e no caminho de regresso, o meu pai ia apontando – para desespero da minha mãe, que insistia em que ele olhasse antes para a estrada – onde tinha trabalhado, onde tinha comido a melhor perdiz estufada, onde tinha bebido uns copos a mais. Era a topografia do adulto de meia-idade antes da chegada da mulher e filho, a segunda adolescência numa terra em que uma estranha liberdade eclode do anonimato.
Tenho poucas lembranças da minha infância – felizmente. Essas poucas lembranças são bastante desproporcionais em relação aos sítios de onde elas vêm e ao tempo que neles passei. Estava quase sempre na cidade, enfiado em casa ou na sala de aula. Lembro-me vagamente da casa em França, uns pormenores difusos, o sítio do fogão, o padrão do papel de parede, a cor com que pintaram as janelas. Da escola lembro-me ainda menos; umas rampas que tínhamos de descer ou subir para entrar nas salas de aulas, um pátio enorme onde as crianças mais façanhudas se entretinham a humilhar as crianças mais reservadas, duas freiras extremamente meigas que eram o meu porto de abrigo quando as coisas não faziam sentido ou o almoço era fígado guisado.»

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