«A narradora-autora descreve a sua vida – desde que saiu da ilha – como uma espécie de claustrofobia: «Sinto falta de ar quando retorno à ilha, como se eu me tornasse irrespirável para mim mesma. Aquela que fui, e não consigo recuperar nem pela memória, e aquela que poderia ter sido se não tenho deixado a ilha, cercam-me de tal maneira que não tenho espaço para respirar.» Assim, a sua relação com Wolfgang, naquele período de férias de ambos, a meio do Atlântico, repõe uma normalidade no modo como vive a ilha. «A normalidade de quem está de férias, seja em que lugar for do mundo. Porque as férias são sempre férias de nós. Pois por mais que nos levemos na bagagem, como se costuma dizer, a verdade é que não a arrumamos nem desarrumamos como usualmente. E nem sequer olhamos a manhã com os mesmos olhos. Mas a ilha nunca me permitiu ter férias de mim. Vir à ilha sempre foi trabalho. Só Wolfgang conseguiu o milagre de me ver livre de mim. Sentimento que era amplificado por sentir que também ele não era ele. Estávamos de férias da vida, como sempre acontece numa intensa paixão por outrem.» Independentemente deste sentimento de férias da vida, aquilo que perpassa ao longo de todo o romance é a ideia de exílio de si mesma que a narradora – nunca é dito o seu nome – passa para o leitor, devido a ter-se partido em duas, aos 16 anos. Propositadamente, Margarida N. Silveira adianta o relógio da realidade um ano, como se fizesse da sua vida uma espécie de «delay» em relação à narradora do livro. Regressando à ideia de exílio, que já vinha da sua tese de doutoramento, aquilo que mais impressiona o leitor é que o exílio não é referente a uma terra, a uma comunidade, a um país ou uma língua, mas a si mesma. É de si mesma que a narradora – suspeita-se que a autora também – se exila ou é condenada a isso, ao deixar a ilha.»
«Entre outros exemplos poéticos, lembras-te da poltrona Showtime do catalão Jaime Hayón, uma peça com cordas vocais e de concepção maleável (alimentada pelo teor almofadado e pelo ritmo das pregas a partir de uma pele em polietileno rotomoldado) ou do Antibodi de Patrícia Orquila que recusava ser chaise longue ou divã para se afirmar como um esteio de lazer à base de alegorias florais (a lã e o cabedal davam corpo às pétalas que dominavam o assento reversível). O Antibodi foi e é um objecto de que Freud teria fugido a sete pés. Para lucubrar sobre a psicanálise, bastaria a sua presença deslumbrante. Também não resististe ao banco Spun de Thomas Heatherwick, uma recriação da espiral da vida que acumulava a função de um inesperado cadeirão (dirias tratar-se de uma metáfora das utopias que ainda hoje subsistem, muitíssimo discretas, nas letras pequenas do dia-a-dia). Por fim, as laranjas que se querem tocadas como as estrelas. Corpo de casca e magma suave, as laranjas são personagens doces, lânguidas por natureza e foram baptizadas para fazer parte de uma gramática do júbilo. Tudo isto se respirava no candeeiro Flower-Pot-Orange de Verner Panton. A peça sugeria uma esfera, um aflorado de gomos e uma pressentida liquidez. Adivinhaste neste candeeiro um ponto de encontro e uma grelha de partida para poder pensar sem metas, sem objectivos, sem pressas. Uma laranja é um projecto de vida realmente. Tal como escreveu Ibn Sâra de Santarém (1043-1123), um poeta que traduziste do Árabe: “Com a sua beleza/ não permite aos olhos que vejam outra coisa:/ parece-me, às vezes, uma chama ardente/ e, outras vezes, o crepúsculo dourado”. Sabias perfeitamente que o design somos nós próprios, revisitados. Percebeste a tempo que certas formas e acenos estéticos acasalam, na casa do design, com uma democracia quase intuitiva que todos partilhamos. É por isso que o design não é apenas uma espécie de revestimento dos objectos culturais. Ele é sobretudo a dança que percorre o modo com que nos olhamos ao espelho, numa sociedade em que o corpo já não é apenas um organismo. O corpo passou a projectar-se para muito longe de si mesmo. Dizes uma palavra em Singapura ao mesmo tempo que o ipad te dá ao dedo a simulação de uma viagem celeste. E, no entanto, continuas serenamente em Portugal sentado numa cadeira que não é apenas uma cadeira. O som da palavra, o dedo, a viagem e o objecto ambíguo onde te sentas são partes de um polvo lúdico que nada tem de orgânico. Trata-se antes de uma construção bem mais vasta de que fazes parte e em que interferes.»
«Fez ontem, 26 de Abril, 25 anos. Infelizmente, Jungersen não deixou mais nenhum livro além de «A Grande Invenção», onde nos mostra, através de mais de duzentas páginas, como «[…] a grande invenção humana não foi a roda, a penicilina ou o foguetão que nos levou à lua, mas a alegria.» No século XIX, Darwin escrevia que a capacidade de adaptação era a grande responsável pela sobrevivência das espécies e, concomitantemente, dos espécimes. E, segundo Jungersen, a alegria é indissociável da capacidade de adaptação. A capacidade de adaptação não se define apenas em relação ao clima, à alimentação, às contrariedades físicas, mas também em relação à capacidade de se ser alegre. Escreve, logo na página 17: «Sem alegria, ninguém sobrevive.» E, depois de várias páginas onde percorre várias doenças psicológicas, como a depressão, o transtorno de ansiedade e o transtorno obsessivo-compulsivo, ligando-as à falta de alegria – «[…] todas estas doenças têm como principal problema a incapacidade de produzir ou de encontrar alegria. É a falta de alegria que está na base do problema e que é comum a todos os distúrbios psicológicos mencionados antes. As diferentes expressões da doença é o modo como a pessoa reage a essa ausência de alegria.» Mas o que é a alegria? Ou o que é que o autor dinamarquês entende por alegria, que acusa de ser a maior invenção humana? Leia-se as páginas 32-3: «Em a Epístola aos Filipenses, Paulo escreve: “Alegrai-vos sempre no Senhor. Repito: Alegrai-vos!” A palavra alegria vem de um verbo grego “phyo”, que significa “produzir”, querendo com isso significar que quem é alegre é produtivo, fecundo. […] Independentemente de uma posição religiosa, o que está em causa é que a alegria, seja no Senhor ou no Universo, é fundamental. A alegria é criadora de vida. É a alegria que permite que possamos ver o futuro como um lugar que não nos é hostil, que nos permite ver adiante e aligeirar o medo.» A alegria, enquanto invenção, não é apenas a criação de vida, mas a criação de sentido para a vida, porque «[…] alegria é uma disposição que nos afasta do peso de todos os fins. E todos os fins, quer seja o de uma relação amorosa, o de um projecto em que se está envolvido ou o da própria vida ou daqueles que amamos, são impeditivos de continuação. Viver com a visão do fim continua ou frequentemente impede que a vida avance. E a alegria é esse desbloqueador. Depois de ganharmos consciência, de sabermos que tudo tem um fim, era preciso um antídoto para que a vida não bloqueasse de vez. A alegria é esse antídoto, essa grande invenção, que permite que o ser humano continue, apesar da consciência.» Jungersen faz também a distinção entre capacidade de criar alegria e capacidade de encontrar alegria. «Ambas são importantes, pois são elas que nos colocam nos eixos do futuro, de vermos a vida com sentido ou, pelo menos, de não vermos a vida sem sentido nenhum. Há, contudo, duas capacidades diferentes: capacidade de criar alegria e capacidade de encontrar alegria. A primeira é aquilo que podemos definir como capacidade de criação e a segunda a capacidade de encontrar as criações que promovem o bem-estar. […] em ambas, é fundamental a aceitação da alegria. Pois não é de todo certo que aquele que cria ou aquele que encontra alegria a aceite. Podemos criar e recusar essa alegria, recusar participar na própria dádiva de vida que foi criar. Assim como podemos encontrar a alegria a cada esquina e constantemente rejeitá-la. Por conseguinte, a despeito de se criar ou de se encontrar alegria, a capacidade de aceitá-la é determinante.» No fundo, o que parece estar em causa neste livro é mostrar que, contrariamente à ideia generalizada de que a tristeza pode ser um grande propulsor de criação, é a alegria que produz, porque é ela que permite que continuemos a projectar futuro e a ter forças para continuar, apesar de todas as contrariedades. «O mundo, sem alegria, não seria uma tristeza; simplesmente não existia. Embora pudesse existir a natureza.»»
«Sentado num canto estratégico, lugar ideal para o caçador do quotidiano, observo. E o que vejo é o que faz a diferença: há movimento, sorrisos debaixo das máscaras, olhos ardentes. Há conversas sobrepostas que chegam a sufocar a vozearia do mundo que é debitada pela televisão. Olhando esta gente, olhando-me a mim, lembro de forma pouco modesta um verso que escrevi e que tive a sorte de o ouvir cantado: “Cada fim é um recomeço”. Porque é de recomeço que se estão a construir estas primeiras horas de liberdade relativa. É um dia de regresso e Deus sabe como eu gosto de regressos. Cada cliente deste pequeno café de bairro é um Ulisses do dia a dia, cansado de uma longa viagem por mapas desconhecidos e territórios inseguros. Aportam a este lugar com histórias fantásticas para contar e preparados para outras que ainda nem começaram. Percebo. Sou um deles, quero ser um deles. O meu telefone volta à vida com planos de trabalho, convites vários para toda a espécie de reencontros. O pastel de nata que devoro tem o sabor da madalena de Proust.»
«Perguntar o que é o desejo é quase o mesmo que perguntar o que pode uma pessoa ser. Avancemos devagar: o desejo não se coíbe ao corpo. O desejo precede e sucede o corpo, mas não o consuma. Pode saciá-lo e regressar logo ao que não o revela, pois o desejo jamais dá a perceber as figurações que o traduzem. O desejo é o móbil do gesto, mas não o gesto. O desejo passa entre as fissuras e as nódoas de todas as linguagens e só se pressente, tal como se prediz a atmosfera de um tornado. O desejo é uma segunda sombra que o corpo projecta no indefinido e, de modo nem sempre claro, em coisas e em seres particularmente definidos. Entender estes locais de definição é tentar conquistá-los. Conquistar aqui implica entrar na gravitação, por vezes hesitante, com que o desejo se dirige aos projectos e às metas em que se instalou. A hesitação é o posto de comando onde geralmente se cruzam desejos. Os espaços onde os humanos hesitam são vizinhos ou estão próximos das regiões onde o desejo incide em coisas e em seres definidos. »
«Horta Seca, Lisboa, quarta, 14 Abril Abrimos as janelas de cada dia para nos queixarmos do tempo, assim ele nos fosse exterior. Portanto, tenho as minhas razões de queixa. Cada passo dado, cada gesto emitido, cada esforço, as ideias arrancadas pétala por pétala de uma flor por existir, tudo participa no coro de tragicomédia que traz à cena A Grande Avaliação. Sempre detestei exames, antes de perceber que passamos a vida na navalha da examinação. Talvez o momento e o movimento que atravessamos seja agravadamente mais de balanço por tanto conter de desequilíbrio. Uma vez mais a pretexto de festival, no caso o 5L que se anuncia para Lisboa nos primeiros dias de Maio, depois da falsa partida de 2020, preparamos outros dois volumes da colecção Mão Dita. Nascida por lembrança e insistência do Luís [Carmelo], que acabou por criar a Nova Mimosa para dar resposta cabal às suas ânsias, pretendia ser versão portátil e laboratorial, ensaio súbito, recolha do volátil da voz alta, chamada para tema e trepidação. O grafismo, muito discutido com a Luísa Barreto sublinharia isso mesmo, com os dois pontos de arame e uma capa de intervenção plástica sem mancha de tipografia, sem guilhotinar as sobras que resultam da dobra dos cadernos. Testámos logo limites com as 82 páginas do «Tratado», do Luís, que chegou a ser finalista do Prêmio Oceanos, com a erudita abordagem corsária dos grandes textos. «Nunca houve inveja do futuro/ na linguagem das aves […] Nunca houve passado/ na linguagem dos homens». O grande leitor enfrenta espelhos e fantasmas, desdobra paisagens e alinha as invenções. Fôlego assim talvez desminta as premissas, mas um laboratório pode ter correntes de ar… Mais alinhado com as intenções, Felipe Benítez Reyes fez pequena antologia dos seus poemas que tinham partido ao encontro da sombra de Pessoa. A ela voltamos com a tradução para cabo-verdiano da Ode Marítima, pelo José Luiz Tavares – quem mais teria o atrevimento? –, ele que exilou o mar dos seus versos de ilhéu. «A, tudu kais é un sodadi di pedra!/ I óra ki naviu ta sai di kais/ I dirapenti ta odjadu ma abri un spasu/ Entri kais ku naviu/ Un angústia risenti, n ka sabe pamodi, ta toma na mi,/ Un nébua di sintimentu di tristeza». («Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!/ E quando o navio larga do cais/ E se repara de repente que se abriu um espaço/ Entre o cais e o navio,/ Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente,/ Uma névoa de sentimentos de tristeza».)»
«Leia-se essa passagem do livro: «Abib Justus responde assim a uma pergunta do apresentador acerca de uma possível interpretação ditatorial desta lei: // – Não podemos ser hipócritas! Ou bem que queremos que não se use o celular quando dirigimos, ou bem que não queremos mas fingimos querer, que é o que a lei nacional propõe, pois todos aqui sabem que ninguém cumpre a lei. Com o «descelular» torna-se impossível desrespeitar a lei… Olhe, vou dar-lhe mais um exemplo que deveríamos adotar: hoje a lei não permite que se ultrapasse uma velocidade máxima de 120 km/h, certo? Então porque permite que sejam vendidos carros que atingem 200 e 300 km/h? Deveríamos exigir que todos os carros não ultrapassassem os 120 km/h! Ou então jogue-se a lei no lixo. Carros com mais cilindrada deveriam ser vendidos para uso exclusivo em pistas de corrida, mais nada. // Como grande retórico que era, Abib Justus sabia que toda e qualquer polémica traria dividendos ao seu império, como ele próprio gostava de chamar em privado a este grupo financeiro. A questão de os carros serem vendidos como motores que não permitissem uma velocidade superior a 120 km/h fez furor por todo o Brasil. É impressionante ver como facilmente as pessoas se dividem acerca de coisas que desconhecem e das quais nunca sequer ouviram falar. Um pouco por todos os jornais e redes sociais a discussão rebentou. Dos carros com controlo de cilindrada até à proibição de venda de refrigerantes, que se sabe serem prejudiciais à saúde, ou de alimentos chamados de junk food, foi um salto. A esquerda, a direita, os ecologistas, os vegetarianos e os defensores dos direitos dos animais enchiam páginas e páginas online exigindo que o governo federal tomasse a posição do estado do Paraná, com a diferença de radicalizar a posição de controlo sobre o que nos faz bem, e cada qual com sua razão e interpretação, como é comum por aqui em matéria de política. Não demorou mais de um mês para haver manifestações em Brasília pressionando o governo a proibir a venda de refrigerantes, de bebidas alcoólicas, de “junk food” e até de carne animal. Havia já quem exigisse que Abib Justus tinha o dever de se candidatar à presidência do Brasil, em nome dos brasileiros que estão fartos de hipocrisia. É sabido que os tempos de crise são pródigos em forjar heróis e posturas radicais.»»
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