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Quando a emel lá no estrangeiro me deu um gato

Valério Romão, no Hoje Macau (30 Julho 2021)

«Certo dia aproveitei o bom humor do meu pai para lhe confessar que preferia gatos a cães. Ele, nascido e criado no campo, na serra algarvia, não percebia porquê. Os animais, para o meu pai, ou tinham uma serventia ou não tinham lugar no círculo doméstico mais alargado. Era-lhe absolutamente estranha a ideia de «animal de estimação». Isso era coisa de gente a quem o dinheiro a mais espoletava a adopção de toda a sorte de comportamentos excêntricos pouco desejáveis. «Um gato para quê?», perguntou-me? «O que vais fazer com um gato?» Na verdade, nem eu próprio sabia. Sentia-me sozinho, tinha pouquíssimo amigos e imaginava que um gato pudesse de alguma forma suprir ou pelo menos minorar essa carência. «Para brincar com ele», respondi, timidamente. «Um gato sai caro», asseverou. «Já temos dois cães, já gastamos tudo quanto podemos gastar em comida para os bichos». Tinha esperança de que ele me tentasse dissuadir sacando do trunfo do dinheiro. «Eu pago», repliquei. «Eu tenho dinheiro». Ele riu-se. «Então mostra lá esse dinheiro», gracejou, «a ver quantos dias consegues dar de comida ao animal, que tu não tens noção do preço das rações». Eu fui buscar um dos mealheiros, atulhado até à boca de moedas e despejei-o em cima da mesa da cozinha. Ele olhou para as moedas, para mim, para as moedas novamente e logo para mim. Não fez perguntas. Eu mantive-me estrategicamente em silêncio. «Quando aparecer aí nas redondezas uma gata que tenha uma ninhada, a gente conversa».

Acabei por ter um gato, um mês e pouco depois. O meu pai, pensando que eu era a criança mais poupada da história das crianças poupadas, não só mo trouxe a casa como me acompanhou orgulhoso ao supermercado para comprar um areão e comida para ele. A senhora da caixa, impermeável à vaidade paterna, reclamava da quantidade de moedas que tinha de contar. O meu pai, impassível, repetia: «algum problema? É dinheiro, não é?».»

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Trevo

Luís Carmelo no Hoje Macau (29 Julho 2021)

«O taxista continua no seu posto sentado ao volante. Olha vagamente para as portadas azuis da casa de saúde ou para o avarandado do café. Por vezes, vira a cabeça na direcção do parque infantil que continua deserto. O locutor da rádio garante que a mudança de dígito irá dar origem, dentro de dias, a um crash global. Este Millenium Bug, tal como o designa, já foi tratado por uma revista americana com o título “banho de sangue”. O medo não tem paisagem, é um buraco onde o teatro de sombras encena as peças mais improváveis com algum selo de verdade. O taxista viu crescer o seu próprio teatro ao rubro, a ponto de se imaginar a arder numa vala comum. O dia não promete bonança, pensou. Foi quando o telefone da praça tocou e o carro partiu para mais uma breve viagem.

O tempo dos clientes é um tempo proscrito. Voa como quem esvazia um balão que não pára de crescer. Até que o automóvel acaba por chamar a si as atenções e a estação de serviço interrompe todas as caminhadas. O taxista propõe-se encher o depósito como sempre, mas, desta vez, vê andar na sua direcção uma mulher de abas largas. Por trás das lentes grossas dos óculos que ostentam aros de chifre, os olhos desmaiam tons marinhos, à medida que a voz cresce naquele afã dos foguetes de arraial que falham na subida.

A mulher parece ter ressuscitado no momento em que encarou de frente o taxista que mantém ainda na mão o tubo negro por onde escorre o gasóleo. Jura que o conhece há muito tempo e repete-o com um ar ao mesmo tempo vitorioso e furioso. O taxista não tem sequer tempo para insistir que se deverá tratar de um engano. Indiferente, ela continua a jorrar palavras e lembra o clima tropical, as azáfamas debaixo do calor, aquilo era outro mundo, não era?

Lembro-me de o ver todas as manhãs com camisa branca a distribuir envelopes porta a porta. Por vezes parava e olhava para cima como se uma nuvem apenas feita para si lhe tivesse sido prometida. Nunca me passou pela cabeça investigar qual seria o seu emprego, mas cruzava-me sempre consigo na mesma estrada de terra batida, aquela terra barrenta cheia de sapos, lembra-se?

O taxista enche o depósito e continua com a longa mangueira na mão, incomodado por ter que interromper os seus habituais gestos mecânicos. À sua frente, a mulher devora as palavras e o relato torna-se de repente tão bizarro como a própria situação em que decorre. Poucas vezes o encontrava durante a tarde, mas havia aquele café entre os coqueiros do vale, isso mesmo, o Majestoso, onde o via por vezes com uma cerveja morna pela frente e o bloco-notas que ia enchendo entre um ou outro olhar na direcção da esplanada. Sempre o achei um solitário. Mas, minha senhora, eu nunca saí daqui da minha terra, está enganada com a pessoa, não sou eu certamente.»

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O vizinho

Nuno Miguel Guedes no Hoje Macau (28 Julho 2021)

Fazemos os nossos amigos, fazemos os nossos inimigos, mas Deus faz o nosso vizinho.
G. K. Chesterton

«Não se julgue que o vizinho é uma tipologia moderna, no entanto. Não, amigos: há milhares de páginas da nossa literatura que tentam caracterizar ou defender o sujeito ali do lado ou do andar de baixo. Por mim bastaria uma reunião de condóminos, mas isso sou eu. Chesterton, que ali está em epígrafe, concordaria comigo, como aliás George Bernard Shaw que deixou esta lapidar verdade: «Se ofenderes o teu vizinho é melhor não o fazeres pela metade». O romântico Schiller lembra a categoria de “mau vizinho” para lembrar que nem o homem mais bondoso consegue a paz se isso não agradar ao dito cujo. O Código Civil está cheio de artigos que visam justamente regular e confirmar a existência desta espécie. Por outro lado também existem as apologias mas normalmente são feitas por homens de enorme estatura moral e bondade, como Martin Luther King Jr que confundem o amor ao vizinho com o amor ao próximo. Percebo mas a prática muitas vezes torna-se difícil.

Por mim, prefiro o anonimato discreto, o cumprimento cortês mas lacónico e o silêncio angustiante do elevador partilhado. Mais a mais agora, em que registo uma guerra surda com um desses cavalheiros acima descritos que me atormentam a paz e o sossego com queixas injustificadas. Como uma que ficará nos anais: na última passagem do ano, com duas pessoas a jantarem na sala, confinados que estávamos, ouviu-se gritos do andar de baixo e a tradicional vassourada no tecto, reclamando contra o barulho. Estava a televisão ligada, imagine-se. E eram 21 horas numa passagem de ano.»

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Colher e ser colhido

João Paulo Cotrim no Hoje Macau (28 Julho 2021)

«Horta Seca, Lisboa, sexta, 16 Julho

Que esconde uma montra? Percorro a página de abertura do sítio e vejo como vem sendo parca a colheita, que nunca foi dada a abundâncias. Logo os restos de sangue camponês encontram razão nas vicissitudes do tempo, cargas de água e sol abrasador ou aquele nevoeiro que se abateu sobre o mundo e as vontades. O bom agricultor sabe ler a meteorologia, até a atmosfera da desgraça, pelo que não será apenas por isso. Onde se conservam as sementes adiadas, em que compostagem os apodrecidos? E as sombras, que celeiro bojudo as mantém na boa temperatura? Tanto por enfrentar e as ferramentas ferrugentas, rombas, quebradas…

O conforto de uma côdea surge de volumes como este «Eva – Ilustradoras Portuguesas do Século XX», aliás no seguimento do «Tom», com grafismo que se vai tornando assinatura (algures na página uma capa) e que celebra a letra em entrada para exposições portáteis que andam por aí nas mãos e olhos de quem as agarrar. O Jorge [Silva] continua, aqui e ali a convite de instituições, a fazer do seu hobby uma vocação, de um interesse pessoal autêntico serviço público. Ao contrário de tantos respigadores, ele pensa o que vai recolhendo quando o oferece em livro. (Em mercado drogado em novidades, desaconselham-se indícios que datem a obra. Caiu em desuso a classificação de catálogo, para que o livro não fique preso a uma circunstância.) Neste caso, que esteve patente na Casa da Cerca, em Almada, o ar dos tempos soprou-lhe por tema o feminino. São nove os nomes primeiros (Alice, Mily, Raquel, Guida, Laura, Ofélia, Sarah, Maria e Fernanda), quase todos bastante conhecidos, mas manda o habitual que se conheça mais o nome (vagamente) que a obra (minimamente). Esta sistemática recolha do esquecimento traz consigo invariável motivo de espanto. Para além dos costumes citadinos, os da alta burguesia e os da mítica ruralidade, de uma infância não menos mítica, encontramos representações da mulher que escapam ao lugar-comum e intenso trabalho plástico. Um bálsamo, as expressivas interpretações de Maria Keil para «Folhas Caídas», do Garrett.

Estonteantes, as composições e as poses e os rostos de Guida Ottolini para a capas da revista «Eva». Melancólicas, as formas de Mily Possoz, que vão do minimal ao colorido solar, passando pelo quase cubismo em ponta seca. Postas as lentes de aumentar da actualidade, o Jorge não hesita em sublinhar na contra-capa: «apesar das contingências da sua educação escolar e familiar, e do expectável papel que a sociedade patriarcal lhes reservava, muitas mulheres conseguiram afirmar um percurso ou uma carreira como ilustradoras editoriais, realizar uma obra inspiradora e inspirada nas vanguardas dos movimentos estéticos e pugnar por um papel igualitário na sociedade do seu tempo.»

Tendo a achar, a partir de testemunhos, que muitas vezes se tratou apenas de viver as possibilidades ao máximo. Com o que tal significa sempre ignorar com sobranceria o impossível anunciado, imposto, palpável. Surge até como metáfora esta brincadeira à la Silva com o código de barras. A imposição logística de um pequeno indicador de (quase) identidade, sobretudo, preço e arrumação, transforma-se em pretexto para modular formas. Ao limite.

São Cristovão, Lisboa, terça, 27 Julho

Tem andado um rio entre nós, pelo que há muito me não encontrava com o Paulo [José Miranda], para acerto de agulhas e apanha da notícia madura. Acompanho nestas páginas e às terças o seu excêntrico contributo para a letradura, não apenas com títulos – entre o doce e o estridente –, mas também com – e tal não será para todos – autores que suscitam a busca dos sequiosos leitores. Vale volume, pelo que comecem os trabalhos de apuro e enxertia! Em 2022, arredondam-se datas e soam já projectos pelo que temos de pensar em arredores para o centro que será, para nós e todo sempre, o livro. E a poesia. Passámos pelo futebol e, pour cause, um verde branco, antes de nos atirarmos ao tinto e às mudanças, que serão apenas de geografia. Apenas? Sim, quando os passos são no caminho da conversão, ao encontro de si mesmo, o exacto lugar não interessa por aí além. Mal lhe falei de novidades traduzidas, tomei nota da sua surpresa por publicarmos traduções. Se nem os casa conhecem os cantos às lombadas… Quedámo-nos em princípio muito inicial e prometedor de romance. O Paulo gosta de ler excertos em voz alta e eu de o ouvir. Não que me concentre, antes me faz andar por lugares. Lá foi o olhar subindo e descendo a estreita e geométrica escadaria que se estende entre azuis à nossa frente, Tejo em cima e céu em baixo.

Calcutá, Lisboa, terça, 28 Julho

Estão elencadas, e não apenas pelos profissionais do contratudismo, as fraquezas dos festivais literários: a vacuidade das ideias distribuídas, a claustrofobia dos temas e editoras dominantes, o espectáculo das vaidades, a promoção da leitura reduzida ao culto do autor, a dislexia entre performance pública e qualidade de escrita, a insistência em um só modelo de conversa pequena perante plateias enormes, etecetera. Ah, e o excesso de festa! Cultura não condiz com alegria, coisa de entretenimento. (O que para aí vai, aliás, de confusão entre uma e outro.) Por princípio, não nos negamos aos ditos. Para o melhor e o pior, são encontros. Quando solicitados, participamos muito para além das nossas possibilidades (e da nossa capela). Nem sempre com bons resultados, nem sempre recebendo o devido tratamento.

Anuncia-se o regresso do Folio, sendo caso particular. Antes mesmo dos dias concretos e definidos de Óbidos, tratamos de pôr mesas de tal modo cubistas que não sei como os copos e os pratos e as vozes e o resto de estar à mesa se aguentam. Com a Raquel [Santos] e o José [Pinho], além de ocasionais convidados, pintamos assim festival dadaísta e muito particular de leituras ao ouvido e absurdas encenações imersivas, projecções holográficas de autores queridos e outros, jogos de sociedade a partir das sinopses, combate entre badanas, intervenções relâmpago de poetas patafísicos, disparates épicos de par com ambiciosos centros de experimentação, enfim, ideias, planos, propostas, esboços e delírios. Não podia ser de outro modo, da gigantesca lista riscada nas toalhas de papel apenas se cumprirá à risca uma sensata e mínima parte, mas a discussão, o gargalhado, a criação bruta, o dito e o pensado, faz com que se cumpra logo ali algo de essencial. Para mim, o resto será sobremesa.»

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A fenda

Luís Carmelo no Hoje Macau (23 Julho 2021)

«O homem caminhava todos os dias para o fundo da antiga pedreira onde não havia ninguém. Fazia disso uma missão, uma prédica ou um sermão a sós que resgatava do eco em cadeia que advinha das profundidades, sempre que se movia com a presteza de um felino. Levava consigo vários cadernos e enchia as folhas com traços que reproduziam os vestígios da violência com que os blocos de mármore tinham sido atingidos durante anos. Poliedros incompletos, rectas quebradas, rectângulos fugidios, extractos lascados, cubos torcidos, triângulos dobrados, texturas fendidas, curvas desfeitas, linhas pendidas, pontos soltos e arestas arruinadas. No fundo de tudo, uma água verde, vagamente turquesa ao centro, definia a alma da imensa cúpula invertida.

Meses e meses de prospecção e de desenhos fizeram com que o homem percebesse que esta ferida gigante se movia. Era um tectonismo lento que emprestava ao vale da pedreira uma locomoção de carrossel, uma suave translação.

Quando chegava a casa, revia a evolução dos desenhos em certas secções e tornava-se claro que os traçados reflectiam um movimento circular. Numa mesma parede – que descia a mais de cem metros até à base, – os mesmos contornos ora se concentravam numa dada direcção, ora irradiavam, ora evidenciavam estranhos paralelismos. O homem tomou a sério estes avisos e agiu em conformidade como se fosse uma prece plagiada. Reuniu amigos há muito tempo afastados, dispersou pensamentos terríveis, mas manteve-se sempre distante do mundo como se ambos fossem rasgos paralelos. Até que, um dia, descobriu a fenda e se maravilhou.

Entrou pela estreita fenda com dificuldade, pois foi preciso entrar de lado com os membros afastados e a cabeça inclinada copiando a pena de pavão de Krishna. Sem que o pudesse prever, viu-se subitamente no fundo de um mar de água muito densa e foi preciso nadar até à superfície para poder voltar a respirar. Pelo meio desvendou um navio afundado, preso entre rochas, taludes e algas de cor azulada. Regressou para rever a embarcação e imediatamente descortinou o estranho habitáculo. Atravessou as portadas hidráulicas, penetrou na câmara pressurizada e sentiu o que seria a gravidade zero. Deslizou ainda pelo ar, flutuou como uma raia e na sua frente sonhou ter visto uma mulher louca, parecida com lady Macbeth no início do quinto acto quando não pára de repetir que “o inferno é sombrio”.»

cracked road concrete close up
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A amigologia

Nuno Miguel Guedes no Hoje Macau (22 Julho 2021)

«Mas agora, mas agora? Tudo me cansa, amigos. Se ouso abandonar por um instante os meus refúgios solitários – a literatura, a filosofia, a música, a fé – sou atropelado pelo que existe. E o que existe é aquilo que o profeta Nelson Rodrigues há muito vaticinou: o triunfo do idiota. Num clima tão extremado como o que vivemos em que a ideia de debate ou da possibilidade do outro começa a ser um ramo de arqueologia é natural que isso possa acontecer.

Mas irrita. Agarradas às circunstâncias sanitárias que vivemos começam a medrar e a ter eco as linhas chalupistas que sempre estiveram latentes: curas através de calhaus judiciosamente esfregados nas costas; desaparecimento de doenças terminais através da meditação ou da convocação de “energias positivas”; diagnósticos através da “aura”; a certeza de que a “Mãe Terra”, bem invocadinha, irá substituir a ciência. E por aí fora.

Cautela: eu não acho que por mais obnóxias que pareçam – e serão – muitas destas “teorias” devam ser dispensadas sem sequer serem ouvidas. Eu tenho o meu Against The Current de Isaiah Berlin aqui ao meu lado e sei bem o que implica a ausência de voz e de resposta. Mas ainda assim.

Então para vos dizer o quê? Que não sou imune. Que também tenho direito às minhas teorias e proclamá-las com a vantagem de não querer discípulos. E num mundo em que se prefere a Humanidade ao humano, a massa ao indivíduo, eis o que vosso oferecer: a amigologia.

Não se trata de uma ciência – se o fosse seria a mais inexacta; não se trata de uma ideologia porque os dogmas não são universais; não se trata de uma arte, porque existe muito para lá do prazer estético. E no entanto é tudo isso e ainda mais baseada no maior risco e privilégio que nos é atribuído: a possibilidade da escolha. A mesma maravilha que nos salva todos os dias é a que nos condena e fere quando as coisas correm mal. E no entanto, e no entanto.»

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O eu entre palco e plateia

João Paulo Cotrim, no Hoje Macau (21 Julho 2021)

Escola de escritas, Algures, sábado, 17 Julho

Na véspera insistia em saboroso almoço, no qual se tratou de cansaços interiores e despolíticas externas, além de dedos e anéis, que as comunidades de leitura me parecem cruciais na promoção de leitura, algures entre a suave entrada e o elegante digestivo. Também por implicarem os leitores nas suas leituras. Quantos livros esconde um livro? Este Clama (Clube de Leitura Abençoados Malditos) dificilmente podia ter começado melhor com «Os Meus Oscar Wilde», de André Gide (ed. Sistema Solar), mas que, no fundo, pertence ao tradutor, Aníbal Fernandes. Os dois In Memoriam são enquadrados por pré, inter e pós-fácios, os quais, naquilo que convocam, são moldura pintada a participar na composição e expressividade da grande imagem. A vida, saravah, é a arte do encontro. E talvez a arte não seja menos a vida dos encontros. Estamos perante um triângulo de bons e produtivos malditos, ficando por ora, Pierre Louÿs na plateia assombrada pela encenação brutal de Wilde e Gide. A morte de um suscita no outro o registo definitivo do momento em que a alegria lhe foi revelada, em que começou a viver. Quando o coração antes apenas tomado pelo desejo abria para a luz de outros afectos. Sexo e amor eram dicotomias afastadas, e foi pela escrita que Gide tentou coser tal ferida. Assim como a usou para perseguir a alegria (nota para o futuro: voltar às páginas que busca esse pólo). No segundo e mais breve texto, o amargor insinua-se e a avaliação enegrece, mergulha em cinzas. A realidade cobrou com sangue ao devir em cena de Wilde. Entre um e outro texto, há excertos do processo em tribunal, dolorosa e bem-humorada peça de teatro onde a lei procura no miolo das palavras os sempiternos medos: o sexo desregrado, a corrupção da juventude, a ociosidade, o prazer, a alegria, enfim, o desafio ao deus posto em religião. O livrinho acaba sendo, ele mesmo, introdução a lugares e caminhos dos ditos malditos: a escrita tornada bússola do eu, aquele pensar com o corpo e a partir dele, o esforço para tornar indistinta vida e arte, cabal maneira de viver uma e outra. Vede com Louÿs, também em prefácio a «Afrodite» (ed. Círculo de Leitores), como fazê-lo: «É que a sensualidade é a condição misteriosa, mas necessária e criadora, do desenvolvimento intelectual. Aqueles que nunca sentiram até ao limite, para as amar ou para as maldizer, as exigências da carne, são por isso mesmo incapazes de compreender toda a extensão das exigências do espírito. Assim como a beleza da alma ilumina o rosto, também a virilidade do corpo fecunda o cérebro.”

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As Viagens de Gulliver – Terceira Parte

Paulo José Miranda, no Hoje Macau (20 Julho 2021)

«Jonathan Swift mostra-nos que estamos sempre num contexto prévio, de uma escala prévia com a qual medimos o mundo em que somos. Séculos mais tarde, Heidegger dirá que antes de mais nós estamos lançados no mundo, agimos nele sem pensar. Nós usamos as coisas do modo que estamos habituados a ver serem usadas. Não perguntamos, não pensamos. Só o fazemos quando algo corre mal, isto é, quando o usual é interrompido.

Imaginemos que se trata da fechadura de uma porta ou de uma torneira de água, nós usamo-las sem nos perguntar pelo seu funcionamento ou questionarmos o seu fabrico ou eficácia, só quando elas não abrem, isto é, quando deixam de se comportar como usualmente, é que somos obrigados a pensar nelas, a perguntar por elas e pela relação que se estabelece entre nós e as fechaduras e as torneiras. Mas isto que acontece em relação às coisas também acontece em relação a nós, àquilo que pensamos de nós. E é isso que lemos em as duas primeiras partes de As Viagens de Gulliver. É quando o ponto de vista usual é interrompido que ele se dá conta do seu ponto de vista usual.

O que acontece em relação às coisas, acontece também em relação ao pensamento, como podemos ver neste exemplo em Liliput. Leia-se: «Mostrou-se admirado do barulho contínuo que o relógio fazia. Assim como dos movimentos do ponteiro dos minutos, que ele conseguia perfeitamente ver – a visão deles é muito mais penetrante do que a nossa –, e pediu as opiniões dos eruditos, que foram diversas e vagas, como o leitor pode muito bem imaginar sem que eu as repita […].» (33) Acerca do relógio é também deliciosa a parte em que os lilliputianos se inclinam a pensar tratar-se de um deus. Reparem que eles interpretam a relação de Gulliver com o relógio como sendo oracular. Leia-se: «Chamou-lhe o seu oráculo, dizendo que indicava o tempo para todas as acções da sua vida.» E nós só não vemos assim um relógio porque nos habituamos ao seu uso, à sua utilidade. Repare-se também como os liliputianos não acreditavam que o mundo pudesse ser à nossa altura, à altura de Gulliver, pois nada nos seus livros o dizia. Leia-se: «Ouvimo-lo afirmar que há outros reinos e estados no mundo, habitados por seres humanos tão corpulentos como o senhor, mas os nossos filósofos mostram-se duvidosos, e preferem pensar que veio da Lua ou de uma das estrelas […]. Além disso, as nossas histórias oficiais, que abrangem um período de seis mil luas, não mencionam quaisquer outras regiões que não sejam as dos dois grandes impérios de Lilliput e de Blefuscu [o reino rival e inimigo].» (44) Como vêm, tal como nós, os lilliputianos têm dificuldade de imaginar o que não sabem, de aceitar o que não se sabe. Preferimos não saber a aceitar uma realidade diferente. Preferimos a ignorância de um texto escrito quando nada se sabia a aceitar a verdade. A verdade é difícil. Só aceitamos a verdade se ela já tiver sido escrita, se ela nos assentar bem, como um fato feito à nossa medida. Nós estamos configurados, não apenas com o aparelho sensitivo que temos, visão, olfacto, etc., mas também configurados pelo que sabemos. Estas duas primeiras partes de As Viagens de Gulliver são uma viagem ao humano, ao modo como na realidade estamos completamente condicionados não apenas pelos nossos sentidos, isto é, pelo nosso equipamento sensorial de captação da realidade, mas também pelo que sabemos ou julgamos que sabemos.

Neste sentido, as duas primeiras partes do livro depõem-nos face a face com a nossa natureza, através de duas viagens a países completamente opostos na escala: um onde somos gigantes outro onde somos homúnculos. É neste confronto, nesta contraposição de escalas que Gulliver se dá conta de si mesmo e do humano, de que nós somos completamente relativos, isto é, que aquilo que sabemos e valorizamos só o fazemos porque estamos presos, configurados a uma escala precisa.»

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No limite da sombra

Luís Carmelo, no Hoje Macau (15 Julho 2021)

«Viver na errância é suplantar o espaço, encontrar locais onde interinamente parar para depois se deslocar a partir dessas âncoras, nas mais diversas direcções e em ritmo de vaivém. Ao fim de dois meses, o mapa descrito pelos passos da mulher é parecido a um fole que se vai avolumando. Desenha-o com o pé na terra batida do jardim como se fosse uma nuvem que tivesse sido assoprada, cada vez com mais fôlego, nas últimas horas do dia da criação do mundo. Perceber a geografia fora das rotinas que se tornam normais é perceber-se a si, na medida em que uma pessoa é também um fole secreto que se alarga, que se desmonta.

Um dia, a mulher voltou a rir do rosto assustado do motorista do eléctrico e, ainda que sem grande motivação, seguiu na direcção do fim da linha. Foram quilómetros de um rumo magnetizado, as passadas sem a audácia do costume, um trajecto que lhe aparecia de forma indiferente. A certa altura a linha do eléctrico 3 terminou, mas uma outra prolongou-a. A mulher perseguiu essa outra linha e ganhou subitamente um novo alento. Após uma hora e meia de andamento, a vegetação selvagem já cobria os carris e, num terreiro onde os flamingos experimentavam os refluxos da vazante, a força da natureza descarnava-os por completo. Foi aí que a mulher encontrou a rulote abandonada e, numa cartolina que substituía os vidros partidos de uma das janelas, pôde ver o desenho.

Era uma esfera com duas enormes saliências, uma para cima e outra para baixo. O hemisfério do norte, chamemos-lhe assim, aparecia dominado por uma montanha ladeada nas vertentes por dois rios, enquanto o inverso, chamemos-lhe o hemisfério do sul, era todo um vasto oceano com uma única ilha, de onde despontava uma outra montanha, precisamente nos antípodas da do hemisfério norte. Dentro desta podia observar-se um túnel escavado em forma de cone invertido e logo dividido por nove círculos descendentes, o último dos quais tocava no centro do mundo, a “morada do diabo”. A partir daí um segundo túnel ascendia por dentro da montanha do hemisfério do sul, através de outros nove círculos que iam crescendo cada vez com mais luminosidade. No topo, o céu era pintado com aguarela de “azul cristalino”. O desenho estava assinado, no cume dessa luz branca e celestial, com letras de criança. Traços largos e redondos que davam a ver o nome que era também o da mulher vagante: Beatriz.»

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As Viagens de Gulliver – Segunda Parte

Paulo José Miranda no Hoje Macau (13 Junho 2021)

«A diferença de tamanho entre nós e os liliputianos, muito menores, ou entre nós e os brobdingnaguianos, muito maiores, não configura apenas uma diferença de escala, mas uma diferença de visão do mundo. De outro modo, a diferença de escala faz com que nos demos conta de que a nossa visão do mundo depende da nossa escala.

Para além deste nosso modo de nos relacionarmos com o mundo circundante, com aquilo que usamos no dia a dia, há também o modo como nos relacionamos connosco mesmos e com os outros. E isto espoleta com muito mais força na segunda parte do livro, em Brobdingnag, porque somos mais sensíveis a perceber as diferenças quando corremos risco de vida ou somos mais vulneráveis.

Por isso mesmo, e não é por acaso, somente na segunda parte do livro Gulliver diz estas palavras: «Sem dúvida alguma, os filósofos têm razão quando nos afirmam que nada é grande ou pequeno senão por meio de comparações» (p. 82) Apesar de se ter dado conta da diferença de escala em Liliput, ele não era vulnerável, ou pelo menos não era vulnerável como o é em Brodingnag. Mais do que em Liliput, é agora em Brodingnag, que ele se dá conta de que o ponto de vista em que estamos usualmente é relativo. Aquela frase, logo no início da segunda parte do livro, aparece quando Gulliver chega a Brobdingnag e se lembra de si no país dos lilliputeanos. Há uma reconfiguração do plano, uma reconfiguração do ponto de vista. Antes, em Lilliput, ele era um gigante, agora a situação inverteu-se, os gigantes são os outros e ele sente aquilo que os lilliputianos deveriam ter sentido com ele, mas que lhe estava completamente vedado. No fundo, o que aqui está em causa, é que nós mesmos só conseguimos nos ver se acontecer uma catástrofe, isto é, um rompimento com o ponto usual em que estamos. Curiosamente, nas viagens que fazemos usualmente o que acontece é que nós reparamos nos outros, nas diferenças, e é isso que acontece com Gulliver em Lilliput. Ele enumera as diferenças, quase comicamente, mas agora, em Brobdingnag, ele apercebe-se dele mesmo. E apercebe-se dele mesmo através da comparação com a sua vivência em Lilliput. Literalmente, ele foi virado do avesso. Viu-se por dentro.»

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