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Crónica hospitalar

Nuno Miguel Guedes no Hoje Macau (2 Junho 2021)

«Estacionam-me enfim numa sala ao lado de outros como eu, camas perfiladas numa simetria que me pareceu inusitada, azáfama silenciosa e diligente de mais batas verdes. Mesmo ao meu lado está um idoso africano, talvez angolano pelo sotaque. Fala muito com as enfermeiras e médicas, sempre rematando da mesma forma
– Vamos todos morrer!, “Vamos sim, senhor Pedro”, diz uma das enfermeiras com o sorriso cansado mas gentil de quem reconhece um freguês habitual. O senhor Pedro continua a insistir no seu discurso apocalíptico e eu penso que me puseram ao lado de uma espécie de alma gémea, talvez tenha a ver com o que o sarcófago electrónico descobriu nas circunvalações do meu cérebro. Vamos todos morrer mas agora não, tenho coisas combinadas. E mesmo sabendo que dificilmente o meu fim está próximo olho para o lado e vejo os meus companheiros de enfermaria num sofrimento manso, expectante e não consigo pensar que ali cada drama é único, ali é o meu drama, um egoísmo inesperado mas real, reduzido que estou a um monte de carne e ossos, despido de todas as minhas afectações, qualidades e defeitos que nada me servem. E talvez por ter sido apanhado em flagrante com estes pensamentos uma enfermeira pede-me que me dispa para vestir o pijama do hospital. A minha resposta veio num tom de indignação circense “senhora enfermeira, um casaco às bolinhas e calças aos quadrados? Recuso, tenha paciência, apesar de tudo tenho uma reputação a manter” e recebo um piropo amável para me acalmar “sim, percebi que o senhor Nuno gosta de estar elegante”, o que sendo simpático é difícil de acreditar para quem naquele momento está com a cabeça ligada. »

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Os homens que abrem caminho

Valério Romão, no Hoje Macau (14 Maio 2021)

«Quando o meu pai morreu, eu tinha acabado de experimentar a adolescência na sua componente de excessos irresponsáveis. Era quarta-feira de cinzas e eu estava de ressaca. Tinha saído na sexta, no sábado, na segunda e na terça e em cada um desses dias eu tinha bebido mais do aquilo a que estava habituado. Pela primeira vez na minha vida, tinha contacto, ainda que muito difusamente, com o conceito de ressaca. Pela primeira vez na minha vida, percebia o significado de «dia seguinte».
O meu pai morreu em casa, nos meus braços. Demasiado repentino, demasiado cedo. Tínhamos finalmente descoberto o filão de uma linguagem comum. Já não passávamos um pelo outro no corredor como dois estranhos que se cruzam numa estação de comboios. Vê-lo partir assim, antes de ser possível recuperar as centenas de abraços que não demos e todas as ideias que não trocamos, arrancou um bom pedaço de mim. O edifício não cai apenas porque se vota parte dele ao abandono e se cola o restante com cuspo.
Há uns dias morreu-me um amigo, o Cândido. Tive a sorte de conhecer e o azar de não o ter conhecido há muito mais tempo. Era um homem maior do que o corpo que habitava (e não era nada pobre em corpo, diga-se de passagem) e morreu cedo. Teve a sageza de privilegiar sempre na sua vida a generosidade e o acto de distribuir o que fosse com as mãos abertas em flor. Era uma espécie de líder tribal que conseguia congregar à sua volta novos e velhos, família e amigos, conhecidos e desconhecidos com uma autoridade natural que decorria de uma espécie de budismo heterodoxo, súmula escolhida a dedo daquilo que a vida lhe tinha posto diante em cada momento. Actor portentoso, talvez a Comunidade do Pacheco tenha sido o texto que mais prazer lhe deu levar a cena. Não por acaso: se há uma palavra que o Cândido abraçaria com aqueles braços capazes de envolver o mundo e o levar ao peito seria essa mesmo. Comunidade.»

Natacha Cardoso/Global Imagens
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Delirium Tremens

João Paulo Cotrim, no Hoje Macau (31 Março 2021)

Horta Seca, Lisboa, sexta, 26 Março

Diz a velha sentada na borda na cama do hospital sem chegar com os pés ao chão, antena sem ligação à terra: são muitas as frases por que passa um homem. No exacto instante – eu morra já aqui na medicina legal fazendo haiku se não foi assim, pelas alminhas da minha mãe, que tinha pelo menos duas além da da mulher a dias de quem ela gostava bué, pela saúde dos meus filhos que nunca tive e por isso morreram saudáveis – passajou uma mudança de sexo que mal a ouviu logo se engasgou. Não havia intensivista nos arredores pelo que teve de ser o quebra-gelo a descalçar a bota. O voluntarismo não resolveu o problema dado a dita ser alta e de atacadores, ou seja, o tempo passou naquele fascinante manuseio entre cirurgia, fala de surdos e truques com cartas. Anunciava-se a desdita, alguém afina a navalha, ninguém afia a voz. O fado é um drone com baterias de longo alcance. Posto isto, que não nas redes, o sexo em vias de sintonizar identidades ia ficando roxo pascal, tipo vindo de sangue de boi a caminho do amarelo de nódoa negra pisada, não tenho presente o pantone. Era grave. Uma gravidade agravada pelo peso dos protagonistas e por não estar pronto o directo para o programa da tarde, perdeu-se a oportunidade, que rolou redonda em câmara lenta para sarjeta. Em câmara lenta era mais emocionante, em câmara lenta tudo se faz, em mais e melhor.
A velha pigarreava para aclarar a deixa, velha queixa, querida gueixa. Não te esqueças onde vais, um perigo em contexto hospitalar, onde se perde gente à toa. Alguém lhe daria a atenção devida, mas era de morte: os sucedidos não paravam de se suceder com sucessível sucesso. Fugiram protocolos de psiquiatria em debandada psiquiátrica.
Quem o diz em voz alta ou alta voz? No segundo piso, afirmou o tarado dos diálogos de séries de horário nobre e grande público, ou grande pobre em erário púbico. Não me fodas, a plateia não cresce por mais que a regues, respondeu o marado da ontologia. Isso é noutro serviço, insistiu o primeiro, o do segundo piso, em cena típica de parada e resposta, que, cá está, convém dar-se no rés-do-chão das novelas de cordel. Neste entretém, sem contar com os que arrefeciam já o mármore frio, faleceram para lá de muitos. O esquecido sexo que queria apenas meter a mudança de genitais deixava-se ir abaixo.
Entretanto e tão pouco, a velha, ainda e sempre ela, golfava ininterruptos ditados. Uma vida não vale nada, mas nada vale uma vida. Que pode uma mulher trespassada pelos balões de fala fazer? Que pode uma trespassada fazer com a mulher que fala pelos balões? Pode a haste do balão fazer de falo na fala? Quem tem balões para fazer a fala confessar uma mulher? Impasse. A imagem congelava sem apelo nem agravo, que os corredores são longos e o conselho de ética hesitante, em ética hesita-se mais e melhor: sacudida como a folha de cantos redondos do velho raio-xis a despir o esqueleto ou pendurada tal o ícone búlgaro da virgem tão mexicana que os chineses não conseguem refazer em plástico. Não me desminta, interveio logo o imagologista de seta de rato na mão, por causa dos pontos de interrogação no relatório.

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Ceci n’est pas une cronique

João Paulo Cotrim, no Hoje Macau (3 Março 2021)

«É a vida que nos mata. Andava às voltas há dias com conto para o qual mandei chamar a Velha, que trataria de fazer o que bem faz. Teria, pelo menos para mim, o rosto que Posada deu a Catrina, entre nuvens de pó, de talco, de terra batida ou outros activadores de memória. Chapéu de largo espectro, continente de ponta a ponta, sobre cabelos há muito esquecidos até do branco mas enlaçados, acolhendo plumas e rendas, luxúrias vegetais e enigmas do aprazimento, abrigando o tremendo sorriso. Um jogo de contornos a armadilhar com sombras e ocos a luz. Natureza morta escavada nos ocos da tinta, recordação do peso no papel. [Nota a desenvolver, dizem os camones que na natureza aprisionada pelas telas há ainda vida, «still life».]
Estava armadilhado a pensar no óbvio com que a cena se me apresentava, mesmo a preto e branco, quando chegou a estapafúrdia diva Astrid Hadad, coberta pelas cores mais populares, no seu álbum extraordinário «Vivir Muriendo», a cantar a plenas vozes Fernando Rivera Calderón [https://youtu.be/c31Euk7dQpI]: «Al verla cerré mis ojitos/ Y tieso yo me quede/ Desnuda y un poco uraña/ Dejo a un lado su guadaña/ Se metió conmigo a la cama y yo solo pude asentir/ Y entonces que llega la vida/ Y me descubre en la movida y se siente tan herida que yo me quise morir/ Y es que estaba tan despechada, tan furiosa y confundida/ La muerte ni me hizo nada/ A mi me mato la vida/ Y es que estaba tan despechada/ Tan furiosa y confundida/ La muerte ni me hizo nada, a mi me mato la vida». Vá lá um desgraçado acabar na cama a dança com esqueletos, esse querido mínimo denominador comum, a ruína que fica da carne que passou, a memória que certas tradições encheram de alma! A vida apanha-nos em pleno comércio de seduções e mata-o, atirando-a para os braços da Outra. Ironias do fadestino. Copos ao alto.
Na perspectiva cubista, para mim a de Juan Gris, soma-se recorte de jornal, caixas de medicamentos, chamadas insistentes, envelopes por abrir e umas linhas que são cordas e, de novo, afiadas e firmes de espetar. Toca o telefone. Não costumo, mas a este companheiro atenderei sempre. Diz que a morte do Ferlinghetti lhe interrompeu a audição do «Le Grand Macabre», do Ligetti, e não distingui a causa da aflição, se o apagamento do velho sábio, se a paragem forçada. «The world is a beautiful place/ to be born into/ if you don’t mind happiness/not always being /so very much fun/ if you don’t mind a touch of hell/ now and then/ just when everything is fine/ because even in heaven/ they don’t sing/ all the time// The world is a beautiful place/ to be born into/ if you don’t mind some people dying/ all the time/ or maybe only starving/ some of the time/ which isn’t half so bad/ if it isn’t you.» Só que a morte dos outros, portanto a vida, também nos mata.»

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Um sol inesperado

Valério Romão, no Hoje Macau (19 Fevereiro 2021)

«Felizmente, temos conseguido controlar (com muitos sacrifícios a vários níveis) a taxa de mortalidade – com algumas excepções muito pouco felizes, como foi o caso deste Janeiro. Mas subsiste a sensação de que a morte – apesar de todas as medidas, apesar das benfazejas vacinas – está à espreita, à espera de um descuido, de uma distracção de principiante, do momento em que ousamos vir à tona reclamar o quinhão de oxigénio a que estávamos habituados. De um ponto de vista objectivo – eu de fora, com os óculos da ciência disponível postos, a olhar para mim próprio – sei que não faço parte de um grupo de risco acrescido. Em princípio, se o bicho resolver fazer de mim turismo, sobreviverei. Mas se em Março do ano passado, quando o confinamento era sinónimo de incerteza e de pavor, eu conhecia apenas duas pessoas que tinham adoecido com o vírus – e que nem sequer moravam em Portugal (olá Ana, olá Carlos, sintam-se bem-vindos a este texto) – e que dele recuperam sem qualquer mazela subsequente, neste momento conheço muito mais gente que adoeceu – e recuperou – e também gente que morreu.
A morte em jeito de estatística no telejornal da noite, vociferada pelo apresentador de serviço como se de um anúncio bíblico se tratasse, não me tira propriamente o sono; há muito tempo que a minha relação com a televisão e os seus mecanismos de predação afectiva é praticamente inexistente. Evito-a como quem se escusa à companhia de uma pessoa desonesta. Mas não há como evitar o pesar por aqueles de quem sabíamos os nomes, ou aqueles que são os pais, os tios ou os avós das pessoas da nossa congregação de vivências. São esses que dão à cara à estatística anónima que alimenta os noticiários. Lá fora cheira à morte.
E, de repente, e por mais que se insista em abandonar a vida à soleira da porta enquanto ela não resolver se portar bem, a vida, como as ervas que rebentam na fenda de uma rocha num assomo de tenacidade, a vida acontece. Sem avisos, sem reservas, sem máscaras: ela segue-nos para onde quer que vamos.»

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Dead line

João Paulo Cotrim no Hoje Macau (3 Fevereiro 2021)

«Aqui há atrasado, em plena primeira vaga do atraso de vida, estava em rica conversa dançante com o querido Manuel [San Payo] à roda dessa linhagem arrepiante da Dance Macabre, e memória puxa desenho (é dele o retrato da dansa ansiada que vai na página), verso puxa música e tombamos no samba. Podia lá ser de outro modo, ainda que haja bandas sonoras para cada gosto e outros tantos desgostos. A gama de tambores, o agogô e o repique, o chocalho e o reco reco, o pandeiro e, sobretudo, a cuíca. Os instrumentos ritmistas parecem ter sido arrancados ao corpo humano, pelo que a batida minimal e circular vem bombada do coração às mãos para ribombar na pele antes de se desfazer em sangue na melodia e na voz. Ou então são mas é do quotidiano, restos de lixo sujeitos à afinação dos que sofrem rindo. Ou vice-versa, que daria bom tema. Interessa-me para o caso este que se evola de episódio concreto às alturas do mais aplicável genérico, o de género humaníssimo. Nasce da vida do lutador-bailarino baiano, Besouro Cordão de Ouro, que canta, via Elis Regina, Baden Powell e Paulo César Pinheiro (versão comovente aqui), o desejo de ser enterrado no quinhão natal, regresso ao útero, portanto. «Quando eu morrer, me enterre na Lapinha/ Quando eu morrer, me enterre na Lapinha/ Calça, culote, palitó almofadinha/ Calça, culote, palitó almofadinha». Isto não ia lá sem sabedoria de arrastar o pé para ganhar balanço e voar. Mais que a culote, comove-me a almofadinha, suavidade de colo para a cabeça. «Vai meu lamento vai contar/ Toda tristeza de viver/ Ai a verdade sempre trai/ E às vezes traz um mal a mais/ Ai, só me fez dilacerar/ Ver tanta gente se entregar/ Mas não me conformei/ Indo contra lei/ Sei que não me arrependi». O lamento que se erga e vá à vidinha da narração cantada, que me deixe ficar aqui a bater copo na mesa, talvez dançando com a amiga do peito tristeza. «Sai minha mágoa, sai de mim/ Há tanto coração ruim/ Ai, é tão desesperador/ O amor perder do desamor// Ah, tanto erro eu vi, lutei/ E como perdedor gritei/ Que eu sou um homem só/ Sem saber mudar/ Nunca mais vou lastimar». Um homem só, despojado de mágoa e tristeza. Homem de um pedido só.»

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