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Imagine: Relatos de um tempo estranho, atípico e extraordinário

Paulo Serra lê «Imagine» (Postal do Algarve, 25 Janeiro 2021)

«Num período em que o mundo vive novo confinamento, com uma vaga ainda mais avassaladora de casos, e em que eu, pessoalmente, estou fechado numa casa estranha a cumprir a quarentena requerida àqueles chegam de viagem, com quase nenhum contacto com o mundo exterior (a não ser o virtual), este livro não podia ter chegado em melhor altura. Imagine: Relatos de um tempo estranho, atípico e extraordinário, publicado pela Arranha-céus (editora chancela da abysmo), é um livro feito por pessoas que nasce da partilha de testemunhos online entre amigos e clientes da Mercer Portugal sobre como foi vivida a pandemia, o que mudou e moldou a nossa vida, assim como a nossa forma de trabalhar. Esta ideia nasceu de um momento de partilha durante as noites de confinamento instituído em março de 2020 em que a Mercer “juntou” por Zoom amigos e conhecidos, em grupos de 5 a 7 pessoas para, em tom informal e descontraído, falarem sobre si e as suas experiências. Estas conversas decorreram às «5 para as 10 da noite» com o requisito obrigatório de se fazerem acompanhar por um copo de vinho e culminam neste livro que reúne 28 testemunhos de profissionais das áreas de Recursos Humanos, Marketing e Direcção de empresas, isto é, «Pessoas de Pessoas» (p. 41) das mais diversas áreas, como a hotelaria, seguradoras, banca, ensino, etc.»

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Quero é dançar na chuva

João Paulo Cotrim, no Hoje Macau (27 Janeiro 2021)

«Cá está novo fechamento, anunciado à náusea, adiado ao limite. Ainda assim, as ruas não se esvaziam. A catástrofe está instalada à razão de um avião em queda por dia, mas nem isso acende as campainhas histéricas dos telexes virtuais. Ou antes, os alarmes são ignorados, por não querermos acreditar na impossibilidade de se viver como habitualmente. Arde-me a casa, mas na vez de tentar apagar todos os fogos, o fogo, entendo por bem arrumá-la.
Nem isso: escolho um gesto minimal repetitivo e nele me instalo, performance silenciosa no escuro. Melhor faria se observasse os mil modos do gato se espreguiçar, harmoniosas odes à potência do salto.
Parceiro de projectos postos em pausa, o João Francisco [Vilhena] desafia-me para um «Diário das nuvens», desconhecendo ainda assim a minha desmedida e diletante atracção por esses fugidios elementos. Que teriam para dizer essas imemoriais companheiras destes nossos pára-arranca? Um dos muito encantos das ditas massas suspensas de água e poeira está em nada dizer. Somos nós que nelas penduramos estados de espírito, tornando-as vestes da tristeza ou da melancolia. O João envia, a cada dia, fotografia de um caso, jogando com luz, composição e a sua leitura do dia. Estou a vê-lo a bater às portas para poder subir às varandas, aos telhados, identificando-se: «é para contar as nuvens». Para contar das nuvens só mesmo palavras, micro-histórias ao sabor da absoluta liberdade, perseguindo ideia ou descascando palavra, descrevendo objecto ou engendrando situação, observando, dentro e fora. Exercício de felino doméstico, arranhar sofás e espreitar visões do vizinho nenhures. As decisões urgentíssimas que continuem presas na sua desesperança prática. »

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A resenha de Immanuel Kant

Paulo José Miranda, no Hoje Macau (26 Janeiro 2021)

«Não estamos perante um romance muito original, mas para além do estimulante contexto histórico, o mais interessante é a forma como a resenha de Kant e a carta ao antepassado de Anna se cruzam com a descrição política dos seus dias, que são os dias em que vivemos. Quase no início da carta lemos estas palavras: «Entregando-se aos seus instintos mais baixos, o homem tem tanta necessidade de dizer mal de alguém quanto de endeusá-lo. Deriva daqui a facilidade com que os homens seguem os fanáticos. E isto é tão válido para os assuntos religiosos quanto políticos ou artísticos. Espero que ao longo da minha resenha o leitor tenha visto que só a razão e o conhecimento podem servir de antídoto para tamanha doença do espírito.»
Segundo Anna Scheler, a ideia de escrever este romance veio quando assistia aos noticiários das notícias do Brasil e à eleição de Jair Bolsonaro como presidente do país. Diz a escritora numa entrevista: «Nessa altura estava debruçada no estudo de Kant, particularmente o “Ensaio Sobre as Doenças da Cabeça” – texto de Kant também publicado na revista de Hamann em 1766, em cinco números, em que também critica Swedenborg – quando vejo aquelas notícias, que de imediato se ligaram à eleição de Donald Trump e ao crescimento dos governos autoritários e de partidos de extrema direita. Pensei na necessidade de voltarmos a Kant. Na necessidade de razão que o nosso tempo tem. Nestes tempos sombrios, estamos muito necessitados de voltar a ler Kant, que se bateu pela sanidade humana como poucos filósofos o fizeram.»»

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Os bárbaros chegaram

Carlos Morais José, no Hoje Macau (26 Janeiro 2021)

«E os bárbaros aos pouco foram ocupando as ruas, as praças, as mentes das gentes simples. E mesmo de outros que, mais finos, rapidamente perceberam que seria melhor converterem-se ao barbarismo pois sempre haviam sonhado ser carrascos de alguém, ainda que esse alguém fosse a sua mãe, o seu primo, o seu vizinho ou mesmo o amor da sua vida.
As mulheres sonhavam que os bárbaros as arrebatassem nos seus cavalos de aço e as transportassem para castelos de pesadelo, mas ainda assim castelos e não as vivendas de tédio que os seus homens haviam construído nos arredores da cidade.
Contudo, na praça, nós, firmemente sentados, ainda esperávamos os bárbaros sem compreendermos que eles já estavam no meio de nós, e discutíamos o que haveríamos de fazer se um dia eles pretendessem invadir-nos a cidade e apoderar-se da praça onde permanecíamos sentados, sem saber como realmente rir ou como realmente chorar.
Era como se precisássemos da ideia dos bárbaros para fingir que podíamos ainda sentir coisas como a indignação ou a vergonha.»

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Um livro uno e múltiplo

«Paulo José Miranda escreve de forma singular, expressiva, intimista e reflexiva. A sua escrita procura a unidade na multiplicidade dos textos e autores.
A editora Abysmo (2019) reuniu em livro, numa cuidada edição com ilustrações de Tiago Albuquerque, três contos – Um Prego no CoraçãoNatureza Morta e VícioTrês textos distintos, escritos em momentos diferentes, mas que poderão ser lidos como uma trilogia que nos fala sobre o século XIX português, sobre escritores e pensadores, criação artística que nos induz a uma reflexão sobre a vida, o amor, a felicidade e a tristeza.»

Um livro por semana, Plano Nacional de Leitura (19 Dezembro 2019)

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Uma questão darwiniana

«Durante muito tempo pensei que seria razoável alocar grande parte da responsabilidade pelo estado-de-coisas desanimador na estupidez generalizada e na aridez espiritual de que nenhuma técnica ou artefacto nos consegue aliviar. Por mais tecnicamente competentes que nos tenhamos tornado, cada homem e mulher continua a nascer tão oco como no início dos tempos. Acresce ainda a dificuldade de cada vez haver mais para conhecimento produzido por apreender, digerir e integrar. A educação, no sentido helénico do termo, continua a ser um percurso e uma responsabilidade individual. Pode ser que estejamos tão entretidos com a passagem do tempo e com a necessidade de preencher avidamente cada segundo desse andamento que não prestemos a devida atenção ao vagar, ao silêncio e ao que está mesmo ao nosso lado, a pedir olhos que vejam e mãos que cuidem.»

Valério Romão, no Hoje Macau (22 Janeiro 2021)

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Natal: uma calamidade desejada

«Fiquei estupefacto, quando, em Outubro passado, o PM e o ministro da economia, cada um à sua maneira, apareceram nas televisões a dizer que a estratégia anti-pandémica do governo passava por “salvar o natal”, sabendo-se que estávamos à distância de pouco mais de um semestre para que o processo de vacinação começasse a produzir alguns efeitos. Cálculos matemáticos publicados pouco depois disso referiam um desmedido número de mortos e um grande número de infectados, caso se optasse por não anunciar medidas restritivas no natal. Unânimes e conscientes do sacrifício colectivo, a medida de ‘liberalização’ avançou. É evidente que tudo o que agora está a acontecer em Portugal tem essa estranhíssima decisão como fonte primeira.»

Luís Carmelo, no Hoje Macau (21 Janeiro 2021)

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A pretexto do «Diário das nuvens»

Nuvens

Em véspera de novo fechamento, rodeados de desgraças e perplexidades, o João Francisco Vilhena, com quem já estava a desenvolver uma boa mão cheia de ideias, desafiou-me para um «Diário das nuvens». Uma fotografia sua do mais enigmático dos elementos trataria de despertar micro-narrativas.«Era a porta da rua. Não do prédio, mas da rua. O exterior, que costumava ser de todos, vedava-se. A ideia encontrava-se entalada no exacto espaço entre entrada e saída.» Estamos nisto à razão de uma por dia em modo absolutamente libertário, forçosamente melancólico. O João desconhecia «Nuvens», a publicação que fizemos, com o Hoje Macau, para a Feira do Livro de Lisboa, em 2019, pelo que resolvi trazê-la a este céu cerrado. JPC

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Thomaz de Mello, designer total

«Se o abstraccionismo duma grande tapeçaria de Portalegre (1971, p. 241), vendida há oito
anos num leilão Cabral Moncada por 16 000 €, o dobro do seu valor-base, nos dá conta da
grande evolução plástica do pintor, e se o luxuoso álbum camoniano de 1972, já referido,
constitui «o canto do cisne do ilustrador» (Silva, p. 204), Jorge sublinha o longevo trabalho
expositivo de Thomaz de Mello, «talvez o mais relevante de todo o design português da
especialidade», por vezes «agregando competências de ideólogo, comissário e arquitecto» (p. 214).
Todavia, os seus derradeiros anos de vida são marcados pelo «ostracismo dos seus pares, que
deixaram Tom de fora de alguns dos eventos ligados à emergência de uma nova geração de
designers e da consciência do design como disciplina», o mais significativo dos quais, certamente,
foi a criação da Associação Portuguesa de Designers em 1976, de cujo movimento ele foi excluído
«sem grande surpresa» (Bártolo, p. 16). De pouco lhe valeu ter sido «um designer imprescindível»
(Bártolo, p. 9), «parceiro ideal das grandes empresas e instituições públicas» (Silva, p. 214). Assim
se compreende, afinal, o silêncio a que tem sido votado e que este notável livro põe agora fim,
abrindo também caminho a novas e continuadas inquirições.»

Vasco Medeiros Rosa, sobre «Tom – ilustração e design», de Jorge Silva, no Observador (16 Janeiro 2021)

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Carta de separação a um lugar e mais

«Despeço-me então do lugar onde vivo, pronto que estou para rumar a outras geografias que são felizmente desejadas. Escrevo para me despedir de um lugar lindo, no coração da cidade que mais amo no mundo, com vista próxima para o azul-lisboa e tudo o que sob esse milagre existe. Mas sobretudo a separação aqui é do bairro feito gente, à escala humana. Escrevo para me despedir do senhor Manuel, do Carlos ou do épico mau humor do senhor Sebastião do café que eu frequentava e que ao recomendar o prato do dia não se abstinha de comentar: “Eu não gosto como eles fazem mas se quiser é bom…”. Separo-me do senhor Manuel, cozinhando sempre de boné e da sua mulher, a Dona Carmo, casal proprietário e resistente do restaurante onde tantas vezes fui o único cliente e onde, quando isso não acontecia, tive o prazer de discutir tudo e mais alguma coisa com os nativos do bairro. Ou seja: pertencer, pertencer-lhes. Despeço-me dos miúdos da escola municipal número 1, cujo chilrear me entrava pela janela e tantas vezes me deu forças para enfrentar os dias. Digo adeus a esta rua íngreme com frutarias, armazéns de revenda, floristas, cafés onde se joga à moeda, com quatro ou cinco nacionalidades por metro quadrado. Lisboa vive, sem folclore e assumindo sem problemas a sua raiz mestiça, esfarrapada mas digna, capaz de a qualquer momento sair de casa na sua mais deslumbrante roupa só porque sim.»

Nuno Miguel Guedes, no Hoje Macau (20 Janeiro 2021)

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