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As Viagens de Gulliver – Quinta parte

Paulo José Miranda no Hoje Macau (10 Agosto 2021)

«Quanto ao sentido comportamental e não ontológico podemos ver o modo como Swift nos mostra o desprezo com que os habitantes de Laputa olham Gulliver, por este não ter bom ouvido musical. Leia-se: «Ainda que não me seja possível dizer que me trataram mal nesta ilha, devo confessar que me sentia muito abandonado e, de certo modo, olhado com desprezo. Nem o príncipe nem o povo se mostraram curiosos em relação a qualquer tipo de conhecimento, além da matemática e da música, no que eu me encontrava muito abaixo deles, e era por isso olhado com muita indiferença.» (163) Swift mostra-nos assim algo muito comum no comportamento humano através dos habitantes de Laputa: nós tendemos a desprezar aqueles que não partilham os nossos conhecimentos ou os nossos interesses, ainda que possam até ser mais sábios do que nós. Mesmo julgar que a sabedoria é melhor do que a ignorância, pode ser visto como um modo viciado de nos vermos uns aos outros. Não digo que seja, não estou a afirmar que a ignorância seja melhor ou tão benéfica para a comunidade quanto o conhecimento, estou apenas a afirmar que pode ser visto como um modo viciado, um modo estritamente humano de ver, tal como os habitantes de Laputa em relação a Gulliver. Veja-se esta passagem maravilhosa: «Havia na corte um grande senhor, parente próximo do rei, e por essa razão tratado com muito respeito pelos demais. Era opinião universal que se tratava da pessoa mais ignorante e estúpida que ali vivia. Tinha prestado à coroa serviços eminentes, tinha grandes dotes naturais e adquiridos, realçados pela integridade e pela honra, mas tinha tão mau ouvido para a música que os seus detratores contavam que muitas vezes o haviam visto bater o compasso errado;» (163-4) A despeito do senhor ter grandes dotes naturais e adquiridos, realçados pela integridade e honra, não deixava de ser criticado e alvo de chacota devido ao seu mau ouvido para a música, que era fundamental para os habitantes de Laputa. Quantas vezes não vemos pessoas íntegras e honradas serem alvo de troça devido a não configurarem o ponto de vista da comunidade? O que está aqui em causa nesta apresentação de Swift é o modo como os preconceitos, isto é, aquilo que tomamos por certo e necessário, a despeito de nenhuma prova a favor ou contra, nos impedem de ver o outro com justeza. »

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As Viagens de Gulliver – Quarta Parte

Paulo José Miranda, no Hoje Macau (3 Agosto 2021)

«Sim, nós vivemos como se não existíssemos. Vivemos como se tivéssemos de seguir determinadas normas e comportamentos, como se a nossa existência não tivesse nada a ver connosco. Na verdade, de modo geral, nós não existimos, seguimos os outros. Não apenas o que vemos e o que ouvimos, mas também o que achamos que deve ser, sem qualquer investigação acerca do assunto. De modo geral, vivemos naquilo a que Kierkegaard chama de estádio estético da existência. Mas isto não é análise que caiba aqui. O que cabe aqui é que estes estranhos seres viviam num mundo à parte, e precisavam de alguém exterior a eles que os fizesse reparar ou darem-se conta do mundo e, concomitantemente, dos outros ao seu redor. Esta descrição deste estranho povo, se pensarmos bem, não nos é assim tão estranha quanto parece. É bem verdade que não andamos com batedores com varinhas ao nosso lado, a lembrarem-nos de quando temos de falar e de quando temos de ouvir. Mas bem que podíamos ter. Pois na verdade, e é isso que Swift percebe bem, de modo geral o humano está fechado em si mesmo sem prestar real atenção aos outros ou até a si mesmo. Nós na verdade não prestamos atenção a nada. A nossa atenção está continuamente a ser diluída em outra atenção à frente e assim por diante sem que nos detenhamos no que quer que seja. E se isto ao tempo de Swift era completamente claro para ele, nos nossos dias de smartphones e de computadores é escandalosamente visível para todos nós. Este povo somos nós, na verdade, povo esse, que só mais tarde entendemos, é o oposto do povo dos cavalos, na quarta parte do livro.»

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Colher e ser colhido

João Paulo Cotrim no Hoje Macau (28 Julho 2021)

«Horta Seca, Lisboa, sexta, 16 Julho

Que esconde uma montra? Percorro a página de abertura do sítio e vejo como vem sendo parca a colheita, que nunca foi dada a abundâncias. Logo os restos de sangue camponês encontram razão nas vicissitudes do tempo, cargas de água e sol abrasador ou aquele nevoeiro que se abateu sobre o mundo e as vontades. O bom agricultor sabe ler a meteorologia, até a atmosfera da desgraça, pelo que não será apenas por isso. Onde se conservam as sementes adiadas, em que compostagem os apodrecidos? E as sombras, que celeiro bojudo as mantém na boa temperatura? Tanto por enfrentar e as ferramentas ferrugentas, rombas, quebradas…

O conforto de uma côdea surge de volumes como este «Eva – Ilustradoras Portuguesas do Século XX», aliás no seguimento do «Tom», com grafismo que se vai tornando assinatura (algures na página uma capa) e que celebra a letra em entrada para exposições portáteis que andam por aí nas mãos e olhos de quem as agarrar. O Jorge [Silva] continua, aqui e ali a convite de instituições, a fazer do seu hobby uma vocação, de um interesse pessoal autêntico serviço público. Ao contrário de tantos respigadores, ele pensa o que vai recolhendo quando o oferece em livro. (Em mercado drogado em novidades, desaconselham-se indícios que datem a obra. Caiu em desuso a classificação de catálogo, para que o livro não fique preso a uma circunstância.) Neste caso, que esteve patente na Casa da Cerca, em Almada, o ar dos tempos soprou-lhe por tema o feminino. São nove os nomes primeiros (Alice, Mily, Raquel, Guida, Laura, Ofélia, Sarah, Maria e Fernanda), quase todos bastante conhecidos, mas manda o habitual que se conheça mais o nome (vagamente) que a obra (minimamente). Esta sistemática recolha do esquecimento traz consigo invariável motivo de espanto. Para além dos costumes citadinos, os da alta burguesia e os da mítica ruralidade, de uma infância não menos mítica, encontramos representações da mulher que escapam ao lugar-comum e intenso trabalho plástico. Um bálsamo, as expressivas interpretações de Maria Keil para «Folhas Caídas», do Garrett.

Estonteantes, as composições e as poses e os rostos de Guida Ottolini para a capas da revista «Eva». Melancólicas, as formas de Mily Possoz, que vão do minimal ao colorido solar, passando pelo quase cubismo em ponta seca. Postas as lentes de aumentar da actualidade, o Jorge não hesita em sublinhar na contra-capa: «apesar das contingências da sua educação escolar e familiar, e do expectável papel que a sociedade patriarcal lhes reservava, muitas mulheres conseguiram afirmar um percurso ou uma carreira como ilustradoras editoriais, realizar uma obra inspiradora e inspirada nas vanguardas dos movimentos estéticos e pugnar por um papel igualitário na sociedade do seu tempo.»

Tendo a achar, a partir de testemunhos, que muitas vezes se tratou apenas de viver as possibilidades ao máximo. Com o que tal significa sempre ignorar com sobranceria o impossível anunciado, imposto, palpável. Surge até como metáfora esta brincadeira à la Silva com o código de barras. A imposição logística de um pequeno indicador de (quase) identidade, sobretudo, preço e arrumação, transforma-se em pretexto para modular formas. Ao limite.

São Cristovão, Lisboa, terça, 27 Julho

Tem andado um rio entre nós, pelo que há muito me não encontrava com o Paulo [José Miranda], para acerto de agulhas e apanha da notícia madura. Acompanho nestas páginas e às terças o seu excêntrico contributo para a letradura, não apenas com títulos – entre o doce e o estridente –, mas também com – e tal não será para todos – autores que suscitam a busca dos sequiosos leitores. Vale volume, pelo que comecem os trabalhos de apuro e enxertia! Em 2022, arredondam-se datas e soam já projectos pelo que temos de pensar em arredores para o centro que será, para nós e todo sempre, o livro. E a poesia. Passámos pelo futebol e, pour cause, um verde branco, antes de nos atirarmos ao tinto e às mudanças, que serão apenas de geografia. Apenas? Sim, quando os passos são no caminho da conversão, ao encontro de si mesmo, o exacto lugar não interessa por aí além. Mal lhe falei de novidades traduzidas, tomei nota da sua surpresa por publicarmos traduções. Se nem os casa conhecem os cantos às lombadas… Quedámo-nos em princípio muito inicial e prometedor de romance. O Paulo gosta de ler excertos em voz alta e eu de o ouvir. Não que me concentre, antes me faz andar por lugares. Lá foi o olhar subindo e descendo a estreita e geométrica escadaria que se estende entre azuis à nossa frente, Tejo em cima e céu em baixo.

Calcutá, Lisboa, terça, 28 Julho

Estão elencadas, e não apenas pelos profissionais do contratudismo, as fraquezas dos festivais literários: a vacuidade das ideias distribuídas, a claustrofobia dos temas e editoras dominantes, o espectáculo das vaidades, a promoção da leitura reduzida ao culto do autor, a dislexia entre performance pública e qualidade de escrita, a insistência em um só modelo de conversa pequena perante plateias enormes, etecetera. Ah, e o excesso de festa! Cultura não condiz com alegria, coisa de entretenimento. (O que para aí vai, aliás, de confusão entre uma e outro.) Por princípio, não nos negamos aos ditos. Para o melhor e o pior, são encontros. Quando solicitados, participamos muito para além das nossas possibilidades (e da nossa capela). Nem sempre com bons resultados, nem sempre recebendo o devido tratamento.

Anuncia-se o regresso do Folio, sendo caso particular. Antes mesmo dos dias concretos e definidos de Óbidos, tratamos de pôr mesas de tal modo cubistas que não sei como os copos e os pratos e as vozes e o resto de estar à mesa se aguentam. Com a Raquel [Santos] e o José [Pinho], além de ocasionais convidados, pintamos assim festival dadaísta e muito particular de leituras ao ouvido e absurdas encenações imersivas, projecções holográficas de autores queridos e outros, jogos de sociedade a partir das sinopses, combate entre badanas, intervenções relâmpago de poetas patafísicos, disparates épicos de par com ambiciosos centros de experimentação, enfim, ideias, planos, propostas, esboços e delírios. Não podia ser de outro modo, da gigantesca lista riscada nas toalhas de papel apenas se cumprirá à risca uma sensata e mínima parte, mas a discussão, o gargalhado, a criação bruta, o dito e o pensado, faz com que se cumpra logo ali algo de essencial. Para mim, o resto será sobremesa.»

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As Viagens de Gulliver – Terceira Parte

Paulo José Miranda, no Hoje Macau (20 Julho 2021)

«Jonathan Swift mostra-nos que estamos sempre num contexto prévio, de uma escala prévia com a qual medimos o mundo em que somos. Séculos mais tarde, Heidegger dirá que antes de mais nós estamos lançados no mundo, agimos nele sem pensar. Nós usamos as coisas do modo que estamos habituados a ver serem usadas. Não perguntamos, não pensamos. Só o fazemos quando algo corre mal, isto é, quando o usual é interrompido.

Imaginemos que se trata da fechadura de uma porta ou de uma torneira de água, nós usamo-las sem nos perguntar pelo seu funcionamento ou questionarmos o seu fabrico ou eficácia, só quando elas não abrem, isto é, quando deixam de se comportar como usualmente, é que somos obrigados a pensar nelas, a perguntar por elas e pela relação que se estabelece entre nós e as fechaduras e as torneiras. Mas isto que acontece em relação às coisas também acontece em relação a nós, àquilo que pensamos de nós. E é isso que lemos em as duas primeiras partes de As Viagens de Gulliver. É quando o ponto de vista usual é interrompido que ele se dá conta do seu ponto de vista usual.

O que acontece em relação às coisas, acontece também em relação ao pensamento, como podemos ver neste exemplo em Liliput. Leia-se: «Mostrou-se admirado do barulho contínuo que o relógio fazia. Assim como dos movimentos do ponteiro dos minutos, que ele conseguia perfeitamente ver – a visão deles é muito mais penetrante do que a nossa –, e pediu as opiniões dos eruditos, que foram diversas e vagas, como o leitor pode muito bem imaginar sem que eu as repita […].» (33) Acerca do relógio é também deliciosa a parte em que os lilliputianos se inclinam a pensar tratar-se de um deus. Reparem que eles interpretam a relação de Gulliver com o relógio como sendo oracular. Leia-se: «Chamou-lhe o seu oráculo, dizendo que indicava o tempo para todas as acções da sua vida.» E nós só não vemos assim um relógio porque nos habituamos ao seu uso, à sua utilidade. Repare-se também como os liliputianos não acreditavam que o mundo pudesse ser à nossa altura, à altura de Gulliver, pois nada nos seus livros o dizia. Leia-se: «Ouvimo-lo afirmar que há outros reinos e estados no mundo, habitados por seres humanos tão corpulentos como o senhor, mas os nossos filósofos mostram-se duvidosos, e preferem pensar que veio da Lua ou de uma das estrelas […]. Além disso, as nossas histórias oficiais, que abrangem um período de seis mil luas, não mencionam quaisquer outras regiões que não sejam as dos dois grandes impérios de Lilliput e de Blefuscu [o reino rival e inimigo].» (44) Como vêm, tal como nós, os lilliputianos têm dificuldade de imaginar o que não sabem, de aceitar o que não se sabe. Preferimos não saber a aceitar uma realidade diferente. Preferimos a ignorância de um texto escrito quando nada se sabia a aceitar a verdade. A verdade é difícil. Só aceitamos a verdade se ela já tiver sido escrita, se ela nos assentar bem, como um fato feito à nossa medida. Nós estamos configurados, não apenas com o aparelho sensitivo que temos, visão, olfacto, etc., mas também configurados pelo que sabemos. Estas duas primeiras partes de As Viagens de Gulliver são uma viagem ao humano, ao modo como na realidade estamos completamente condicionados não apenas pelos nossos sentidos, isto é, pelo nosso equipamento sensorial de captação da realidade, mas também pelo que sabemos ou julgamos que sabemos.

Neste sentido, as duas primeiras partes do livro depõem-nos face a face com a nossa natureza, através de duas viagens a países completamente opostos na escala: um onde somos gigantes outro onde somos homúnculos. É neste confronto, nesta contraposição de escalas que Gulliver se dá conta de si mesmo e do humano, de que nós somos completamente relativos, isto é, que aquilo que sabemos e valorizamos só o fazemos porque estamos presos, configurados a uma escala precisa.»

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As Viagens de Gulliver – Segunda Parte

Paulo José Miranda no Hoje Macau (13 Junho 2021)

«A diferença de tamanho entre nós e os liliputianos, muito menores, ou entre nós e os brobdingnaguianos, muito maiores, não configura apenas uma diferença de escala, mas uma diferença de visão do mundo. De outro modo, a diferença de escala faz com que nos demos conta de que a nossa visão do mundo depende da nossa escala.

Para além deste nosso modo de nos relacionarmos com o mundo circundante, com aquilo que usamos no dia a dia, há também o modo como nos relacionamos connosco mesmos e com os outros. E isto espoleta com muito mais força na segunda parte do livro, em Brobdingnag, porque somos mais sensíveis a perceber as diferenças quando corremos risco de vida ou somos mais vulneráveis.

Por isso mesmo, e não é por acaso, somente na segunda parte do livro Gulliver diz estas palavras: «Sem dúvida alguma, os filósofos têm razão quando nos afirmam que nada é grande ou pequeno senão por meio de comparações» (p. 82) Apesar de se ter dado conta da diferença de escala em Liliput, ele não era vulnerável, ou pelo menos não era vulnerável como o é em Brodingnag. Mais do que em Liliput, é agora em Brodingnag, que ele se dá conta de que o ponto de vista em que estamos usualmente é relativo. Aquela frase, logo no início da segunda parte do livro, aparece quando Gulliver chega a Brobdingnag e se lembra de si no país dos lilliputeanos. Há uma reconfiguração do plano, uma reconfiguração do ponto de vista. Antes, em Lilliput, ele era um gigante, agora a situação inverteu-se, os gigantes são os outros e ele sente aquilo que os lilliputianos deveriam ter sentido com ele, mas que lhe estava completamente vedado. No fundo, o que aqui está em causa, é que nós mesmos só conseguimos nos ver se acontecer uma catástrofe, isto é, um rompimento com o ponto usual em que estamos. Curiosamente, nas viagens que fazemos usualmente o que acontece é que nós reparamos nos outros, nas diferenças, e é isso que acontece com Gulliver em Lilliput. Ele enumera as diferenças, quase comicamente, mas agora, em Brobdingnag, ele apercebe-se dele mesmo. E apercebe-se dele mesmo através da comparação com a sua vivência em Lilliput. Literalmente, ele foi virado do avesso. Viu-se por dentro.»

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As Viagens de Gulliver – Primeira Parte

Paulo José Miranda no Hoje Macau (8 Julho 2021)

«Também George Orwel, que considera As Viagens de Gulliver um dos melhores livros da história da humanidade e o seu escritor o melhor prosador de língua inglesa, fez acima de tudo uma leitura política deste livro, não deixando de sublinhar a sua excelsa ironia.

Que Swift estava em guerra contra o seu próprio tempo, isto é, contra a organização da sociedade e da política, ao mesmo tempo que nutria um enorme desagrado pelos livros de viagens, pois sabia que eles eram um poderoso veículo de ignorância, são factos inolvidáveis. A organização da sociedade, antes como agora, é corrupta, irracional, e estimula a desenvolvermos o pior de nós, ao invés de procurarmos sermos melhores do que somos, de um ponto de vista ético e científico. E Swift mostrou-nos isso como ninguém, pelo menos até Orwel. Também é verdade que os livros que Swift criticava, tanto ontem como hoje, reproduzem aquilo que as pessoas incultas querem ouvir, isto é, aquelas que não se preocupam em investigar mais acerca daquilo que se pronunciam ou acerca daquilo que lêem. Ao tempo do escritor irlandês, esses livros especulavam acerca de seres e terras estranhas sem qualquer relação com a plausibilidade; ao nosso tempo, especulam formas de auto-conhecimento sem aprofundamento da palavra ou do número, sem um aprofundamento daquilo que somos, como se pudéssemos chegar a nós por determinados gestos ou rituais. Ou os novos livros de viagem, que são as teorias da conspiração. Estes livros não só mantêm as pessoas entretidas com fantasias absurdas como as afastam do conhecimento. Tanto ao tempo de Swift quanto ao nosso. No fundo, aquilo que podemos ver nas montras das grandes livrarias. Jonathan Swift atacou tudo isto de modo implacável. Tudo isto são factos e podemos sem sombra de dúvidas encontrar nos livros de Swift em geral e neste em particular.

Mas aquilo que me parece mais importante neste livro de Swift é do foro ontológico e não político ou social. Talvez mais do que em qualquer outro livro de literatura se possa aplicar literalmente estes versos de Álvaro de Campos:

«O binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo. / O que há é pouca gente para dar por isso.» No final do livro, no último capítulo da quarta parte, o narrador, Gulliver, escreve: «Assim, caro leitor, te ofereci a narração fiel da história das minhas viagens durante dezasseis anos e mais de sete meses, relato em que me preocupei mais com a verdade do que com o estilo. Eu poderia, como outros, ter-te causado espanto com histórias estranhas e improváveis, mas preferi relatar fielmente os factos, na maneira e estilo mais simples, porque o meu principal propósito era informar-te, e não divertir-te.» (A edição utilizada em todas as citações é a da Relógio D’Água, na tradução de Luzia Maria Martins, p. 275). Reparem na tripla ironia da passagem: poderia contar histórias improváveis, mas preferiu não o fazer, mas antes contar apenas a verdade. Uma dupla ironia surge porque na verdade as histórias são completamente improváveis, ao mesmo tempo que mostram a verdade; por fim, a terceira parte da ironia aparece quando pede desculpa de não cuidar do estilo, quando a sua prosa é sublime. No fundo, o que Swift nos está a dizer, que faz ao longo de todo o livro, é que o problema dele não é a imaginação, mas a falta de verdade. Imaginação não é contrário a verdade. Ver-se-á adiante aonde isto nos vai levar. »

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A morte de um apicultor – parte 3 e última

Paulo José Miranda no Hoje Macau (29 Junho 2021)

«Podíamos com toda a segurança apresentar «A Morte de um Apicultor» como um grande livro de porquês. Mesmo quando as frases nos aparecem em forma de sentenças, actuam dentro de nós como perguntas. Veja-se o caso das frases do capítulo V, que tem o título «Quando Deus acordou». A primeira diz: «Em vez dele, havia uma mãe.» (165)

Em vez dele o pai. A ideia de Deus ser uma mãe põe-nos a pensar. Não é Deus ser uma mulher, pois isso não é nada de novo, é Deus ser uma mãe ao invés de um pai. Se Deus fosse uma mãe, a humanidade estava como estava? A outra frase, e é a que fecha este mesmo capítulo V: «Se Deus existe tudo é permitido.» Frase que inverte a posição de Dostoiévski em Crime e Castigo, se bem a que ele não o diga «ipsis verbis». Mas mais interessante ainda é a frase anterior, que a língua começou a morrer. Num mundo perfeito a linguagem não faria falta. Gustaffson está claramente a dizer-nos que a linguagem é aquilo que mais nos magoa, sendo ao mesmo tempo aquilo que nos define e nos permite a criação de todos os símbolos que nos ajudam na pragmaticidade da vida. E, obviamente, num mundo onde a linguagem desaparece, a última frase teria de ser, sem margem para dúvidas: Se Deus existe tudo é permitido. Esta frase tem de ser lida à luz da esperança. Tudo pode ser, num mundo onde se possa voltar para trás.

Onde se consiga inverter o tempo. No fundo, deus é esperança. Aquilo a que chamamos deus poderíamos chamar esperança, e assim passamos a vê-lo melhor.»

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A morte de um apicultor – parte 3

Paulo José Miranda no Hoje Macau (26 Junho 2021)

«De qualquer modo, um casamento acaba sempre por encontrar as suas próprias leis. Veja-se como o narrador descreve o seu: «Saber mais do que os outros era uma maneira de ficarmos ligados um ao outro. // E nós estávamos ligados: sem sentimentalismo, sem grande sensualidade, mas de um modo confortável. Sentíamo-nos como dois solitários que se tinham encontrado e que, por causa dessa solidão, tinham algo em comum e deixavam de ser solitários. Mantermo-nos juntos, a Margareth e eu, era uma forma de dizer.» (63) Outro modo substancial de nos pôr a ver o mundo como usualmente não vemos prende-se com a aquilo que escreve acerca das abelhas. Leia-se: «A morte de um enxame sente-se quase como a morte de um animal. É uma entidade que deixará saudades, como se fosse um cão, ou, pelo menos, um gato. // Mas a morte de uma abelha deixa-nos completamente indiferentes. Deitamo-la no lixo, e já está.» (19)

Esta passagem é absolutamente estonteante. Gustaffson mostra-nos aqui duas coisas extraordinárias e distintas. Primeiro, não é que nas abelhas o colectivo é que importa e não o individual, mas como isso nos faz pensar imediatamente no ser humano. Ele não fala do humano, mas obriga-nos a pensar nele, ao descrever tão clara e categoricamente a distinção entre colectivo e individual, entre enxame e abelha. Aliás, mais tarde, no segundo capítulo, escreverá: «(“A mim próprio”, “eu próprio”: hoje em dia. Acho esta expressão absurda. Não tem conteúdo.

Mas não consigo explicar bem.)» Este não consigo explicar é fundamental ao longo do livro. Nós não conseguimos explicar bem as coisas, não só aquilo que está fora de nós, mas também aquilo que está em nós. Por conseguinte, por que carga de água um romance teria de ser capaz de explicar? O que melhor pode fazer é mostrar, no sentido de Wittgenstein, na célebre distinção entre mostrar e dizer. Escreve o filósofo que nós podemos dizer aquilo que pode ser explicado, aquilo que pode ser colocado em uma proposição lógica. O que não pode ser colocado em uma proposição lógica deve ser mantido calado, em silêncio. Ou então, mostrar. Mostrar é a função da arte. Através da arte podemos mostrar o que nos acontece, mas através da lógica, não. Seja como for, naquela distinção entre enxame e abelha e mais tarde a incompreensão do «eu próprio», Gustaffson faz-nos pensar em tudo isto. Em tudo isto e muito mais que não consigo explicar bem.»

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A morte de um apicultor – parte 2

Paulo José Miranda, no Hoje Macau (15 Junho 2021)

«A esperança não tem como horizonte de sentido um futuro melhor, mas um presente alargado ou um passado alargado. A esperança é acima de tudo a expressão de uma vontade de que as coisas voltem ao normal. E voltar não é para a frente, é para trás. Quando alguém diz «tenho esperança que a minha mãe melhore» mais do que reportar-se a um futuro, está a reportar-se a um passado, a um tempo em que as coisas eram normais, a um tempo em que não havia doença. Parece haver uma ideia de futuro, mas na verdade é uma esperança de que tudo volte a ser como era.

No fundo, a esperança é um mecanismo que transforma um adulto em criança. O medo da criança não é o medo do adulto. O medo da criança, a mais das vezes é imaginário; o medo dos adultos é concreto, enraizado em factos. A esperança ao transformar o adulto em criança, altera-lhe também os medos. Um cancro já não é mais um conjunto de tecidos a degradar-se a matar-nos por dentro, passa a ser uma coisa desconhecida que assim como apareceu, pode desaparecer. Escrever um livro pode fazer desaparecer essa coisa desconhecida, Deus pode fazer desaparecer essa coisa desconhecida. O desconhecido, para desaparecer, só precisa de imaginação. Repare-se como quase no final do livro Gustaffson define o humano como um ser que balança entre a animalidade e a esperança. (168) Não é entre a animalidade e o espírito, porque espírito não sabemos bem o que é. É entre a animalidade e a esperança. Ou, se preferirem, entre a animalidade e o anseio de transformação do tempo. Aliás, não podemos esquecer a última frase do livro: «Podemos sempre esperar.»

E de que modo é que podemos analisar o estribilho que percorre todo o livro: «Recomeçamos, não nos rendemos.» De outro modo, podemos ligar este refrão à esperança ou há algum modo em que se ligue este refrão e a esperança? Não se liga. Ou, pelo menos, não se liga de imediato, sem que antes mostremos os outros centros gravíticos desta obra.

E um desses centros gravíticos, que melhor nos pode iluminar o refrão do livro, é precisamente aquilo a que podemos chamar «a máquina de fazer perguntas inusitadas». Gustafssonn mostra-nos que escrever é, acima de tudo, arriscar o pensar. Pôr o pensamento em risco, ir além daquilo que pode ser feito em filosofia ou em ensaio.»

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A morte de um apicultor

Paulo José Miranda, no Hoje Macau (8 Junho 2021)

«Esta será a primeira de quatro partes à volta de um livro do escritor sueco Lars Gustaffson, «A Morte de um Apicultor». A edição usada nas nossas citações é a da editora Marcador, na tradução de Mélanie Wolfram e Afonso Cruz. A seguir às citações, entre parêntesis, aparece o número de página desta edição. A edição original é de 1978.

Estamos perante um livro «sui generis», por várias razões. Primeiro, porque se trata de um livro composto por 3 cadernos, de cores e temáticas diferentes, deixada por um professor primário, que nos conta a história a sua história, embora tenha sido organizada por uma outra pessoa, que é quem começa a narração do livro. Como se o escritor se colocasse de fora do que está a escrever e nos dissesse: isto que vão ler não fui eu que escrevi, apenas organizei. De imediato, faz-nos lembrar de uma peça famosa de Pirandello, Esta Noite improvisa-se, onde no início é o encenador que vem ao palco, não para desculpabilizar-se, como faz Gustaffson no início do livro, mas para dizer que aquilo a que os espectadores vão assistir não é da responsabilidade do escritor Luigi Pirandello, mas dele, o encenador.

Embora ao contrário, com uma estratégia inversa, estamos perante o mesmo artifício: a de fazer com que o escritor não seja o foco da atenção do leitor ou espectador. Embora o problema da dificuldade de identificação do que é real e do que é ficção seja muito maior em Pirandello do que no escritor sueco, pois a obsessão filosófica primeira de Gustaffson é a linguagem. E adiantei-vos uma citação: «Contrariamente ao que acontece com a percepção das cores, a linguagem não desenvolveu palavras específicas para definir as sensações das dores. Elas não têm nome.» Faltam-nos palavras, não apenas para nos expressarmos, mas para nos conhecermos. Ainda nos falta palavras para sabermos quem somos. Isto sempre foi uma preocupação maior do filósofo Wittgenstein. E estas preocupações no livro de Gustaffsson alargam-se no terceiro capítulo, «A Infância», onde o narrador lembra várias expressões que ouvia na infância, em reuniões familiares, e analisa-as para além do esperado, isto é, escalpeliza as expressões tentando mostrar o que está de facto por detrás daquelas frases que são repetidas quase sem se pensar nelas. Dou alguns exemplos: «para cúmulo da desgraça»; «uma pessoa que eu cá sei» ou «é sempre a mesma merda». Quase no final do terceiro capítulo «A infância», lê-se: «Sabemos o que querem dizer as palavras, e ao mesmo tempo não as entendemos.» (126) Mas além da questão do entendimento ou não entendimento da linguagem, Gustaffson liga o uso compulsivo dela, o estarmos sempre a falar como uma espécie de procura de redenção ou, pelo menos, um acreditar que alguém nos ouve. Que alguém nos ouve sinceramente. Leia-se: «Liberta a humanidade sofredora /

Mas primeiro liberta-me a mim, porque fui quem sofreu mais. / Basta apanhar o eléctrico durante uns quilómetros para perceber a situação. E não conseguirem queixar-se de nada, queixam-se das suas sagradas doenças, das dores dos joelhos, das pedras dos rins, das úlceras, das veias inflamadas, dos soluços e das azias, das diarreias ou das fezes duras como rochas, que fazem barulho ao bater no fundo do penico. / E enquanto falam disso, imaginam que alguém lhe dá importância, só por se queixarem.»

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