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As circunstâncias e o seu homem

João Paulo Cotrim no Hoje Macau (6 Outubro 2021)

«Horta Seca, Lisboa, terça, 28 Setembro

Os últimos dias, semanas até, começam e acabam sob o signo de Jean Moulin. Hoje, mal acabado terno reencontro com o Fernando [Alves] à sombra dos microfones da TSF, tive que recuar a séculos passados atravessando loja tradicional em esquina da Baixa para procurar fita que sustentasse os painéis que, do salão nobre da Casa da Imprensa, extravasaram para a rua. Um rosto, não mais que isso, mas com densidade tal que tem hipnotizado os transeuntes sempre incautos da cidade maior. Nas paragens e nas esquinas, no verso de anúncios, por exemplo, ao mais recente 007, perguntam quem terá sido este Jean Moulin que por aqui passou há oitenta anos com o desejo de resistir mais e melhor à noite que se abatia sobre a Europa. Daqui a pouco lutaremos com a corrente de ar para colocar os painéis, rígidos e frágeis, na longa montra que vocifera sobre negro: «Artista boémio, funcionário rigoroso, político eficiente, resistente determinado, herói improvável: o rosto da França».

Ontem começámos com um postal inteiro, na estação dos correios do Camões, dizendo que a mensagem escrita rasgou e continuará a rasgar fronteiras. Dissemos com a pompa dos discursos dos familiares e autoridades, da assinatura de mitos presentes, devidamente carimbado o conjunto. A Quinzena Jean Moulin, ao longe, parecerá um postal, atirado ao ar, lançado ao rio. Agora ansiamos pela chegada do catálogo que reúne, sob a batuta sempre vivaz do Jorge [Silva], as pistas e os vestígios que fomos conseguindo recolher, com a determinação bem-humorada do João [Soares], a infinita e gargalhada paciência da Manuela [Rêgo], além da atenta vigilância do «exilado» no Luxemburgo, José Manuel Saraiva, sólido construtor de histórias da História. A sala enche-se para lá do possível ou do provável para ler e comentar a figura e nisso nos comprazemos. Os primos, que responderam com extrema generosidade aos nossos inquéritos e inquietações, comovem-se. O presidente da associação de amigos de Jean Moulin, Jean-Paul Grasset diz-nos que esta era a primeira vez fora de França que alguém homenageava o resistente. E logo desta maneira. Alguém indica uma figura, talvez secundária, outro deixa-se fascinar por detalhe amoroso na vida aventurosa, aquele sublinha o documento e a sua circunstância, e mil pequenos debates daqui partem. E o rosto brilhando omnipresente. A embaixadora da França, Florence Mangin, visivelmente impressionada, pergunta-me qual seria, entre os nossos, personalidade equivalente. Rabisquei hesitante umas hipóteses, que não nos faltaram resistentes, mas nenhuma me pareceu exacta por incompleta. As circunstâncias que fizeram Jean Moulin foram únicas e essencialmente resultado da experiência francesa, entalada entre o miserável colaboracionismo e «l’attentism», o tristonho esperar de braços cruzados, entre a cobardia generalizada e uns actos soltos de quixotesca coragem. O homem comum tornou-se extraordinário no momento em que disse: não!»

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Traurig

Nuno Miguel Guedes, no Hoje Macau (6 Outubro 2021)

«Assim, eis-me aqui a tentar vestir de palavras este negro suave, este odor dulcíssimo de flores que definham. É um combate inútil mas uma catarse necessária. A resignação triste pode ser uma armadilha terrível ou até um pecado mortal – a acedia, uma renúncia à vida e a Deus – para quem como eu é crente.

Mas mesmo assim, que farei destas ruínas em que me encontro? Que outra coisa poderei fazer senão admirá-las, tentar descrevê-las? Um dia, espero, serão uma paisagem antiga. Agora são reais, o meu mundo. Chamemos-lhe melancolia, então. Mas não de afectação, não de bric-à-brac. O poeta, como o escritor, pode ser o tal fingidor. Com a verdade me enganas, lembra-me a minha inoportuna memória. E é a mesma memória que prontamente me aponta para três dos mais bonitos versos da língua portuguesa, escritos a propósito do amor mas que agora me assentam perfeitamente na alma: “Que dias há que na alma me tem posto / Um não sei quê, que nasce não sei onde, /Vem não sei como e dói não sei porquê”.»

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Pedro Miguel Silva lê «O Plantador de Abóboras»

Pedro Miguel Silva lê «O Plantador de Abóboras», de Luís Cardoso (Mil Folhas/ Deus me livro 6 Outubro 2021)

«Em 1930, Jean Cocteau escreveu o monólogo “A Voz Humana”, que acabaria por se tornar numa obra intemporal da literatura mundial e num nutritivo alimento teatral, ao revelar uma maiores tragédias reservadas à vida humana: o drama das relações amorosas. Um sentimento que, de certa forma, está presente em “O Plantador de Abóboras” (Abysmo, 2020), livro de timorense Luís Cardoso onde, através da voz de uma mulher que esperou pelo noivo durante longos anos, viajamos pela triste sina de um país por onde passaram os “malae colonialistas”, os “kamikazes do Japão”, os “komodo ou lagartos da Indonésia” e, por fim, “os seus libertadores”. E sempre com o “Dom Quixote” de Miguel Cervantes a comandar, à batuta, os seus três andamentos.»

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As escarpas

Luís Carmelo no Hoje Macau (30 Setembro 2021)

«Sobre a relva, evitando as roseiras que caem pelas traves de madeira, vês um homem e uma mulher. Estão ao longe, mas desarmam os gestos e as palavras com relativa facilidade. Dois seres físicos que recebem centelhas de luz, moléculas que lhes sulcam os ouvidos e as extremidades dos membros. Respondem espalhando círculos de ar que se entranham na paisagem, geometrias flutuantes que sobem lá de baixo até à varanda onde já te encostaste, de costas para os dois sofás. Ela relembra a roupa demasiadamente branca da cama naquele verão. Ele diz que há sentimentos que não são captados pela acção da consciência. Como que provêm de uma atmosfera longínqua e, de um momento para o outro, habitam-nos sem pedir qualquer licença.»

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A mão no rosto

João Paulo Cotrim no Hoje Macau (29 Setembro 2021)

Santa Bárbara, Lisboa, segunda, 13 Setembro

Conhecia este texto, que dança nas profundezas, da Inês [Fonseca Santos], fruto da deliciosa prática da partilha – toma que está maduro, ajuda-me a descascá-lo. Desconhecia o quanto de solar dele extraiu o Mantraste – olha como o cubismo nos permite fazer do fragmento corpo inteiro. E depois ao ser impresso o raio do texto ganha outros tons – será rosto maquilhado? «António Variações – Fora de tom» (ed. Pato Lógico/ Imprensa Nacional), esguio de formas, como todos os da colecção Grandes Vidas Portuguesas, está cantarolando pelas estantes, nas minhas mãos.

Os bem-pensantes, que os há sob cada pedra em todos os quadrantes, insistem no erro de que os livros de putos apenas a eles se destinam e dispensam leituras aos entretanto crescidos. Neste pequeno volume, a Inês e o Bruno dizem tanto sobre a vida de cada um, as vidas dos outros, o peso das palavras, o modo como elas nos abrem ou fecham os dias, falam do que somos se o soubermos ser! Sem condescendências, sem medo de se apaixonar pelo tema, brincando invariavelmente às construções, das caras e dos versos. «Não é em linha reta, o humano», mas há geometrias ocultas, linhas de terra. A fortíssima face do António Variações atravessa o livro por completo, faz-se paisagem e cadeira, dança e ternura, microfone e enxada. Perto, tão perto, passeiam-se as mãos, enormes. Notável a subtileza com que o Bruno insere elementos de uma ruralidade identitária que só o Variações soube tornar cosmopolita – raiz e antena. As convenções, se podem ser casa, tendem a tornar-se prisão. António Variações não deixou ainda de rasgar cantando a liberdade.

Santa Bárbara, Lisboa, quinta, 16 Setembro

Andamos nisto, a disparar em todas as direcções assoberbados com estampas e retratos, talvez auto, à velocidade do absurdo. A Festa da Ilustração explode lá para o início do outonal mês e o José Teófilo [Duarte], à queima-roupa, sem apelo nem agravo, pede-me reflexão escrita em torno do labor de misturas da Marta [Madureira]. Travo a fundo as urgências e fecho-me para vaguear nos seus rostos, lado visível de dilectas geometrias: «A colagem tem sido o seu território. O corpo a sua matéria, o seu assunto, a borracha ilimitada com que estica as histórias, ainda que de outros. E nessa estrutura de tronco e membros, a peça principal tornou-se a cabeça. Ou melhor: o rosto.» Amo mãos, a sua dança na atmosfera, a deliciosa relação que estabelecem com a face respectiva. Do gesto nascem caras (algures na página, exemplo virtuoso). Nisto, a colagem a imitar estes dias, feitos disto e aquilo, sobras e princípios sobre uma qualquer folha suja (de calendário). «A Marta desde sempre integrou na sua linguagem fragmentos do mundo, que deixam de lhe pertencer mal pousam sobre a página tornando-se cor, textura, sinal. Uma mola reproduzida tal e qual não prende nada, do mesmo modo que as esferas metálicas se podem tornar olhos de bicho. E até foi fazendo mais, acrescentando dimensões ao plano, ou vestindo de penas e tecidos certos corpos. Um pouco mais de vida em naturezas mortas.»

Horta Seca, Lisboa, sexta, 17 Setembro

Na escala evolutiva, um livro em pdf ou afim, por útil e facilitador que seja, não consegue ainda andar como um livro. O texto, longe dos nossos olhos, combina-se com as imagens, de modos que só a geometria descritiva explicará, e explode em objecto de capa e espada, perdão, página. Dá-se, então, o mistério. Doravante não será mais meu, ou do Tiago [Albuquerque], que o enriqueceu com visões, este «Jean Moulin – A sombra não apaga a cor».

Serão as vidas a terra de onde brotam as histórias? Basta discorrer um percurso para prender leitores a ponto de ignorarem a vida? Esta biografia aventurosa e por um triz banal deu filmes e romances, mas deu sobretudo um rosto, aqui tintado a negro e sombreado de azul. Ecoa ininterrupta a bela frase de Malraux, à beira do Panteão, com o que este contém de abysmo: «Hoje, juventude, pudesses tu invocar este homem de modo a tocar com as tuas mãos a sua pobre face naquele seu último dia, tocando os lábios que não falaram, naquele dia ele foi o rosto da França.»

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A Relíquia, de Eça de Queirós – 2 (de 8)

Paulo José Miranda no Hoje Macau (28 Setembro 2021)

«O livro, isto é, a narrativa de Teodorico Raposo, começa logo a seguir com esta frase: «Meu avô foi o padre Rufino da Conceição, licenciado em teologia, autor de uma devota Vida de Santa Filomena e prior da Amendoeirinha.» (11) É um início irónico, mesmo sarcástico, ao anunciar que o seu antepassado era padre, teólogo, e autor de uma devota obra sobra a vida de Santa Filomena. O tom está dado. E continua. Duas páginas depois, contando muito rapidamente a história do seu nascimento, a partir dos avós paternos, e já depois de nos ter contado que a mãe morrera assim que ele nascera, escreve: «Depois, numa noite de Entrudo, o papá morreu de repente, com uma apoplexia, ao descer a escadaria de pedra de nossa casa, mascarado de urso […]» (13) A história do fidalgo Teodorico Raposo começa com a relação do avô, que era padre, teólogo e autor de um devoto A Vida de Santa Filomena, com a sua avó, Filomena Raposo, de alcunha a Repolhuda, que era doceira, e a sua ascendência desaparece com o pai a morrer mascarado de urso. Eça de Queirós compõe esta peça na tonalidade de humor. Se o riso é fruto do absurdo do mundo, o humor é a consciência desse absurdo. E o humor é uma forma, talvez privilegiada, de nos pôr a pensar.»

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Parabéns, Gui!

Valério Romão no Hoje Macau (24 Setembro 2021)

«Vinhas minúsculo, embrulhado numa trapagem de hospital, entre as pernas da tua mãe, sobre a maca. Minúsculo e glorioso, feixe de luz prismática reflectindo todas as possibilidades do mundo. Irias ser médico, artista, lutador de MMA, nómada digital – como sói dizer-se agora – ou quiçá astronauta, como o teu pai sonhou ele próprio ser quando começou a olhar para as estrelas e a fazer perguntas sem resposta. Durante dois anos foste isso tudo.

O teu nome foi um problema, sabes? Estávamos à espera de uma menina. Chamar-te-ias Alice, como a nossa heroína do Lewis Carol e a avó da tua mãe. O facto de vires de série acoplado com mangueirinha de irrigação estragou os nossos planos. Durante quinze dias o teu nome foi Inominável Custódio Romão. Ainda pensámos registar-te assim (mentira; eu pensei, a tua mãe nunca). Os nomes masculinos pareciam-nos quase todos banais. Ou pior, associados a pessoas de quem não gostávamos nem um bocadinho. «Que tal Rogério?», perguntava a tua mãe.

«Nem pensar, conheci um Rogério que era estúpido como uma fatia de fiambre». E assim andámos até perceber que não conhecíamos nenhum Guilherme que nos tivesse deixado uma impressão negativa. E não soava de todo mal: Guilherme Custódio Romão. Fica bem numa capa, num letreiro de um filme, até na porta de um escritório.

Quando percebemos que nada do que pensámos para ti serias tu tivemos de chorar algumas noites. Alguns dias. A cada golfada de ar íamos substituindo possibilidade por realidade. Como diz um verso de um poema chinês de que gosto muito «estávamos a lavar-nos impecavelmente com lágrimas». Não tem nada a ver contigo, sabes? Nós é que nos deixámos engordar com as possibilidades que deveriam ter sido apenas tuas. Mas é inevitável. Pergunta a qualquer pai. Quer dizer, se conseguisses falar talvez o fizesses.»

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Jean Moulin Lisboa 1941

Dentro dos momentos | João Paulo Cotrim | Hoje Macau | 27 Outubro 2021

Paris em Lisboa | António Araújo | Diário de Notícias | 9 Outubro 2021

Jean Moulin. Assinalada passagem por Portugal do herói da resistência francesa. | RTP

As circunstâncias e o seu homem | João Paulo Cotrim | Hoje Macau | 6 Outubro 2021

Jean Moulin: A mulher que traiu o homem que desenhava | Afonso Melo | Sol | 6 Outubro 2021

Jean Moulin passou por Lisboa, “um bom ninho de espiões” Fernando Alves entrevista João Paulo Cotrim | TSF | 28 Setembro 2021

Jean Moulin enterrou a pistola, mas cumpriu o “banal dever cívico” de resistir António Marujo | Sete Margens | 27 Setembro 2021

Jean Moulin, o herói da Resistência Francesa que dormiu na pensão Algarve | Ana Sá Lopes | Público | 26 Setembro 2021

Num jardim em Lisboa, Jean Moulin sonhou resistir | Christiana Martins | Expresso | 25 Setembro 2021

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O homem que quis matar o tempo

Nuno Miguel Guedes no Hoje Macau (23 Setembro 2021)

«Cronos é uma invenção nossa. Criámo-lo para dar nomes aos dias, para sabermos identificar saídas ou grades. E assim o fazemos, reconhecendo angústias, alegrias e dificuldades. A nossa reacção ao fim que nos é comum também dele deriva: quando alguém parte ainda jovem surpreendemo-nos e choramos mais a perda. “Foi antes do tempo”, lamentamos. Mas que tempo é este? Qual o tempo ideal para se ser, para viver? Ninguém o sabe nem nunca o saberá porque Cronos é flexível, veste cada um de nós de forma diferente e oferece-nos a nossa sentença irreversível de modo desigual e personalizado.

Por esta e outras razões não consigo imaginar nada tão poético e ao mesmo tempo tão utópico como querer matar o tempo, literalmente. A expressão que utilizamos é falsa porque considera o tempo associado a uma actividade; “mataríamos” o tempo pela negação dessa actividade por outra.»

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