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Elogio da embriaguez

Nuno Miguel Guedes no Hoje Macau (3 Novembro 2021)

«No admirável Drink: a social history, de Andrew Barr (1995), lê-se logo na introdução que o álcool desempenhou um papel fundamental nas sociedades humanas desde o sedentarismo, assumindo variadíssimas formas, desde lubrificante social a instrumento para rituais religiosos passando por meios de matar a sede sem contrair doenças, auxílio à digestão ou um alimento no sentido mais literal do termo. Mas, como lembrou um amigo há algumas noites e no lugar mais apropriado – um bar – existe outra pergunta que, aqui chegados, urge fazer: porque bebemos? Porque bebemos tanto?

A resposta a esta pergunta teve na devida altura o tom adequado: teorias fantásticas, risos e mais encomendas de rodadas. Só que analisada a frio e a sóbrio vemos que não se trata de questão despicienda. A verdade, receio, é esta: precisamos da embriaguez. Não serei o primeiro nem o último a escrevê-lo, estou certo. Mas as verdades atravessam o tempo e os pobres coleccionadores de palavras como eu.

Bebemos para nos transcendermos e para nos salvarmos uns dos outros. O famoso aforismo nietzcheano de que o homem é algo que tem de ser superado encontra aqui o seu verdadeiro sentido. A realidade é demasiado lúcida.»

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Folio 2021: num lugar entre a matemática, as ervas e a literatura, nasceu um ângulo raso

Pedro Miguel Silva à hora certa no lugar exacto, no Folio (Deus me Livro, 29 Outubro 2021)

José Manuel dos Santos, que se tornou amigo de Fernanda Botelho após ter lido os seus livros, destacou o cuidado com os textos de apresentação destas novas edições, “a fazer lembrar as fichas críticas que a Fernanda escrevia para livros que acabavam por ser comprados para as carrinhas da Gulbenkian”. Escritora que, segundo ele, era dotada de uma “inteligência irónica discreta”, bem como um amor familiar pouco vulgar no mundo das letras. Para além da inteligência, da serenidade, da argúcia, de uma ironia inseparável da curiosidade e do conhecimento do mundo, José Manuel dos Santos referiu o seu pouco exibicionismo, algo que terá contribuído para não ter sido uma autora tão falada, apesar de os seus livros terem sido levados em ombros pela maioria da crítica literária da época. “Tinha um flirt com a descrição, e quando se expunha era quase sempre de forma irónica”. Especificamente em relação a “O Ângulo Raso”, diz conter já “todo o futuro da obra dela”, mantendo a sua actualidade mais de setenta anos após a sua publicação original.

José Manuel dos Santos trouxe para a conversa a escritora Nathalie Sarraute, que Fernanda Botelho traduziu por altura da escrita de “O Ângulo Raso”, e que tem um livro intitulado “A Era da Suspeita”, que encaixa no cenário português dos anos 1950, quando estavam no ar os primeiros sinais de que a ditadura poderia estar a chegar ao fim. “O tema do vazio da sociedade, dos valores, aparece aí e será constante na obra da Fernanda”, que considera ser uma escritora portuguesa pós-moderna, muito visual e com um olhar cinematográfico, que pôs fim “ao pacto entre o autor, o narrador e as personagens e assumiu a ambiguidade, as estratégias circulares. O direito tem sempre um avesso”. Após falar da ambiguidade de Fernanda Botelho entre o desejo de conservação da memória e o apelo para fazer tábua rasa, brincou ainda com o facto de, na pesquisa googliana, surgirem três Fernandas Botelho – a matemática, a especialista em ervas e a escritora -, podendo cada uma delas ser a mesmq. O tema central, esse, defende ter sido o da liberdade, “não apenas no sentido abstracto e político, mas na forma como a podemos usar para construir relações com os outros”. Sem esquecer o modo como o amor nos pode dar e tirar essa mesma liberdade.

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A Relíquia, de Eça de Queirós – Parte 1 (de 8)

Paulo José Miranda no Hoje Macau (28 Outubro 2021)

Quanto ao romance que aqui nos traz, há quem veja, e não sem razão, A Relíquia como um romance picaresco, na tradição do célebre romance castelhano O Lazarilho de Tormes, de 1554, de autor anónimo. Anibal Fernandes, o seu tradutor para português, descreve deste modo o livro do castelhano: «[…] recusando-se aos excessos verbais que os grandes nomes da literatura espanhola então afagavam; apoiava-se numa coloquialidade não conhecida ou pelo menos rara entre os escritores da época. Era, para ouvidos e sentimentos, de um realismo penetrante em linguagem de povo; uma reconhecível visão parodística da vida que então rodeava os seus leitores: visão da Espanha decadente, empobrecida com a emigração para as Américas e com as guerras, a que suscitava esta crítica de amargo humor a uma nova sociedade de burguesia a nascer, com parasitismos e ociosidades, abundância de deserdados e avessa, por descrença, aos méritos do trabalho.» Sem dúvida, há um claro diálogo entre A Relíquia e O Lazarilho de Tormes, embora A Relíquia não seja um romance picaresco. Lembremos que o título original do livro era A Vida de Lazarilho de Tormes e de Suas Fortunas e Adversidades. Livro também ele escrito na primeira pessoa e através de um anti-herói, como o são todos os protagonistas da comédia. E não nos podemos esquecer que, no universo da escrita de Eça em particular e da escrita lusitana em geral, Teodorico Raposo é um anti-herói por excelência e que Eça conhecia bem O Lazarilho de Tormes e apreciava-o. As relações entre o livro de 1554 e o de 1887 são evidentes. Mas são propositadas e pretendem que o leitor pense e veja essas relações como um diálogo e não como um pastiche.

O diálogo que Eça estabelece com O Lazarilho de Tormes vai muito além do género picaresco. Não apenas pelo terceiro capítulo, mas ao longo de todo o livro. Na realidade, não há picaresco tout court. Veja-se panoramicamente o que se entende por romance picaresco. Trata-se de um romance que, a partir de uma estrutura em episódios e de um relato normalmente na primeira pessoa, procura explicar o estado de desonra do herói, para o qual são determinantes a sua condição e circunstâncias sociais, que aproveita para criticar, usando geralmente um tom satírico e mordaz. O relato é sempre retrospectivo, pois a personagem relata a sua vida desde a infância até ao momento presente em que está a narrar a história, abordando aspectos referentes à sua genealogia, que determinam a sua personalidade, e às condições sociais em que vive.

Na introdução à edição de O Lazarillo de Tormes de Milagros Rodríguez Cáceres, Mário M. Gonzalez, escreve: «Tentar definir o que é um romance picaresco não é tarefa fácil. Um trabalho nesse sentido merecidamente conhecido é o artigo de Claudio Guillén “Toward adefinition of the picaresque”. No entanto, procurando um enunciado mais sintético, propomos entender aqui romance picaresco como sendo a pseudo-autobiografia de um anti-herói, definido como um marginal à sociedade, o qual narra suas aventuras que, por sua vez, são a síntese crítica de um processo de ascensão social pela trapaça e representam uma sátira da sociedade contemporânea do pícaro, seu protagonista. O principal traço formal da picaresca é — ao menos no seu início — o seu caráter autobiográfico, ou seja, o narrador de primeira pessoa.»

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Dentro dos momentos

João Paulo Cotrim no Hoje Macau (27 Outubro 2021)

Horta Seca (versão n.º 20), Lisboa, sábado, 9 Outubro

A Quinzena [Jean Moulin] fecha com estrondo e dois lançamentos. O do livro-relâmpago, «Jean Moulin Lisboa 1941», onde se acolheu o essencial dos textos e dos vestígios da sua passagem por Lisboa e por nós: o discurso de Malraux, dele fazendo rosto da França, o testemunho literário e (talvez) vivido de Jorge Reis, um belíssimo conto do Fernando [Sobral] a esticar todas as possibilidades ao limite da paisagem, o relatório com as contas da Resistência partida, e muito mais. Umas noitadas valentes, a fazer lembrar outros combates de urgência, corremos atrás do Jorge [Silva] que andou, tal maestro tresloucado, a pôr tudo e todos no andamento certo. Entregámos as 216 páginas a 4/4 cores ao Carlos Vintém na segunda-feira e ao fim do dia seguinte tínhamos 50 exemplares brilhando (demais) nas mãos. (Estes milagres ainda vão acabar com as tuas dúvidas acerca da impressão digital, cota…). Faltou o terno e atento texto do Ferreira Fernandes, que fez a propósito para «A Mensagem» (https://amensagem.pt/2021/10/05/jean-moulin-lisboa-comemoracoes/), mas nem a mais radical tecnologia resolveu o tempo: como incluir texto que ainda não foi escrito?

E depois o outro, aquele para as supostas crianças, quem sabe jovens, inevitáveis adultos, «Jean Moulin, a sombra não apaga a cor» (ed. APCC), traçado a meias com o Tiago [Albuquerque], que acabou por não conseguir estar. Aliás, senti-lhe a falta durante o processo inteiro de criação, que me interessa mais partilhado, dividido, rasgado. O combate entre o possível e o impossível nem sempre se perde, nem sempre se ganha.

O que aconteceu por estes lados, explodindo a partir da Casa da Imprensa, fez-nos acreditar. Descontemos os encontros e reencontros, que os houve e abraçados, além de gestos simples e comoventes, presenças regulares, disponibilidades que reverberam. Aconteceram filmes de sala cheia até altas horas, aqui no Ideal. Centenas de gente a perder-se nas exposições. Debates, acesos, e não apenas entre historiadores de renome. E depois a pedra, momento singelo em dia de comemorar a República, com todos os muitos oradores ironicamente disso se esquecendo. Está no chão do miradouro, a dizer com um olhar penetrante em granito negro do Zimbabué sobre lioz branco que as raízes podem ser horizonte. Afinal, como bem notou FF, se foi aqui que Moulin ganhou a luz, andámos, entre fogo e rasgo, a celebrar Lisboa. Uma certa Lisboa.

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A americana

Luís Carmelo no Hoje Macau (21 Setembro 2021)

«Restam-te os vinte metros quadrados do teu quarto. É a essa nave espacial a que pertences. Nela evaporas toda a cidade de Paris a bordo das cartas de Mário de Sá Carneiro. Nela bebes chá de frutas comprado numa loja de estrada em Badajoz. Nela traças a circum-navegação que te permite idolatrar seja quem for, ainda que não haja vivalma por quem possas morrer de desgosto.

Pensarás: A consciência de si própria nunca é actual. O que vem até mim – o que vejo e o que lembro – desaparece e esvai-se em cada instante. É como se o leme do barco existisse fora do barco e me lançasse a sós, metros e metros à frente da proa, no meio do oceano alteroso. Esse barco é afinal o curso da vida (repetes para ti próprio em surdina): um continente adiado, sempre meio perdido.

Adorarias apagar-te, fazer dos dias uma subtração. Sempre que sais de casa, fixas os olhos nas linhas imprecisas do asfalto. O teu corpo modificou-se e as vozes que nele e dele irradiam atropelam-se. Não imaginas sequer o que te falta, porque, muito provavelmente, viver é estar em falta. Quer olhes de baixo ou por cima para essa fonte rodeada de vasos, quer a olhes do interior onde cai a água ou de fora por onde agora passam os carros, é sempre a mesma fonte que tu observas. Mas nunca a abarcas na totalidade. A transcendência é apenas uma palavra que te segreda que tudo à tua volta está desconectado. Por isso sentes a vida como uma quebra e não sabes sequer como a exprimir com a tua boca. O medo não tem biologia, nem compleição. O medo é não poder convidar ninguém, não incitar a carne, não intimar o escuro.

Pensarás: Aquilo que nos espera é o oco profundo de um saguão, onde por vezes há pássaros escondidos que redemoinham a claridade. E assim foi.»

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É de lá

Nuno Miguel Guedes no Hoje Macau (20 Outubro 2021)

«Agora a sério, por uma vez. Permitam que volte a abusar da vossa generosidade para regressar às pequenas coisas que engrandecem mesmo à nossa frente, minério demasiado nobre para este modesto mas teimoso garimpeiro: esse foi o dia em que algo se terá passado com o servidor Google que alimenta as principais redes sociais deste mundo. De repente, tudo desapareceu. Angústia, horror, dúvida, impotência: o que terá acontecido, o que posso fazer, como manter o contacto com quem queremos e, ainda mais terrível, de que maneira poderão entrar em contacto comigo? Será do meu telemóvel? Será, para reabilitar uma antiga e patusca expressão dita sempre que a ainda púbere televisão portuguesa deixava subitamente de transmitir – será “de lá”?

A questão técnica pouco importa para o que me interessa. Menos ainda o prejuízo financeiro que terá custado ao pobre Zuckerberg – fala-se de seis mil milhões de dólares – a que, estou certo, conseguirá sobreviver. Não: foram as consequências desse hiato tecnológico que me levaram a escrever. Ou seja: de repente, de forma inesperada aconteceu isto: houve gente que ligou. Assim, de viva voz. Lembram-se do que isso era, amigos? Usava-se muito, anexado a outro costume em extinção a que se deu o nome de “conversar”.

Aqui chegado, importará dizer-vos ou repetir para os pobres que insistem em ler-me desde o início: não tenho nenhuma simpatia ou convicção pelo “antes é que era bom”. Nada. Agora é que é. Mas existem coisas que funcionam, que atravessam os dias e continuam a fazer a vida melhor. A voz de um amigo, por exemplo, é uma delas. Não um eco no WhatsApp, não uma fotografia no Instagram. A voz, alguém que vos telefona – ainda é assim que se diz? -, um outro ser humano como interlocutor nem que seja para oferecer as mais terríveis notícias. Ou as melhores.»

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Há um Cadáver Esquisito que bebe cerveja

Pedro Miguel Silva entrevista João Paulo Cotrim a propósito do projecto Cadáver Esquisito (Deus me Livro, 20 Outubro 2021)

Que cadáver esquisito é este que a Abysmo desenterrou, num caixão que vinha carregado de paletes de cerveja?

Desenterrámo-lo do nada. O mecanismo do Cadáver Esquisito é uma espécie de maratona, feita na hora, no sentido de ser a conjugação de vários sabores, em várias áreas, que não apenas a literária. Temos o mestre cervejeiro, o João Brazão, que é também um grande leitor, e que de repente descobriu em autores mais ou menos relacionados com a Abysmo a mesma paixão pela cerveja. Uma bebida que tem um universo suficientemente rico, comparável ao do vinho, e que normalmente desconhecemos, falando dela como uma espécie de refresco que se bebe muito fresco e no Verão. Só mais recentemente começámos a ter uma noção clara da sua riqueza cultural.

Que relação existe entre estes seis contistas e o mágico líquido amarelo?

O Afonso Cruz tem sido o grande embaixador da cerveja, sobretudo da artesanal, e até já se dedicou à sua produção. O Luís Carmelo praticamente só bebe cerveja, no contexto da Mymosa e da Abysmo está sempre de mini na mão. O Paulo José Miranda, um excelente avançado centro que fui contratar ao Brasil, foi-me buscar ao aeroporto e deu-me um curso intensivo e acelerado sobre a riqueza das cervejas de Curitiba. Curitiba é a capital da cerveja no Brasil, com uma universidade da cerveja, uma série de IPAs e muita experiência à volta da cerveja. O Luís Afonso teve, há cerca de vinte anos, a Vemos, Ouvimos e Lemos, uma livraria independente fantástica, muito competente que, para lá de toda a oferta literária, tinha um barzinho com um apreciável panorama de cervejas, que naquela época era impossível encontrar em Lisboa. Tinhas em Serpa e tudo por causa do gosto e do culto do Luís pela cerveja. O Valério (Romão) é outros dos casos que, embora não recusando o vinho – que é também o meu caso -, é também adepto da cerveja, em parte por causa da influência do Paulo Miranda e da muita reflexão, conversa e paleio que tivemos sobre a cerveja. Faria sentido que este primeiro volume reunisse estes autores e não outros.

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Abysmo no Folio

Há um Cadáver Esquisito que bebe cerveja, Pedro Miguel Silva (Deus me Livro, 20 Outubro 2021)

Do activismo de Jean Moulin ao fio de Ariadne, Pedro Miguel Silva (Deus me Livro, 18 Outubro 2021)

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A Relíquia, de Eça de Queirós – parte 3 de 8

Paulo José Miranda no Hoje Macau (12 Outubro 2021)

«Segundo Kant há três classes de disposições originárias no humano para o bem: 1) a disposição para a animalidade, que origina a conservação de si mesmo; 2) a disposição para a humanidade, que origina o sentimento de igualdade e, concomitantemente, de obtenção de valorização de si por parte dos outros; 3) a disposição para a personalidade como ser racional, que origina precisamente a reverência à lei moral como lei da razão; é, no fundo, a disposição máxima para a reflexão acerca de si enquanto humano, e humano enquanto ser racional, a disposição que nos dá a consciência da nossa liberdade, a consciência de que somos responsáveis pelas nossas acções.

Reparem que estas disposições não são «naturezas», isto é, destinos, mas horizonte constitutivos do humano. Isto é, não há humano sem estes «constituintes» (palavra de Kant). E precisamente por isso, Kant refere ainda o que acontece quando nestas disposições o vício corrompe a natureza destas disposições. Na animalidade, quando o vício nos corrompe, entregamo-nos à luxúria, à gula e a uma selvagem ausência de lei, que segundo Kant é a não contemplação do outro no horizonte das nossas acções.

Não nos importamos se o outro sai prejudicado, desde que os nossos apetites sejam satisfeitos. Kant chama também a isto o amor de si, no sentido em que a pessoa pensa acima de tudo naquilo que será o seu bem-estar acima, não só do bem-estar dos outros, mas também no prejuízo dos mesmos. Na corrupção da disposição para a humanidade, entregamo-nos à inveja, à ingratidão e à alegria malvada. Com este último, Kant quer dizer «comprazimento no sofrimento alheio».

E do mesmo modo que há três classes de disposições para o bem, há três diferentes graus de propensão para o mal. Repare-se que Kant faz uma distinção entre disposição e propensão. A disposição é constituinte, a propensão é um estar-se predisposto a alguma coisa. Por exemplo, podemos ser predispostos ao alcoolismo, mas nunca chegarmos a beber ou até a controlar essa predisposição. Uma disposição é constituinte, por conseguinte sem possibilidade de não acontecer. O primeiro grau de propensão para o mal deve-se à pusilanimidade, ou, como lhe chama Kant «[…] a debilidade do coração humano na observância das máximas em geral […]» (35) Ou seja, apesar de vermos o caminho do bem, aquilo que deveríamos fazer, por fraqueza não o conseguimos fazer.

O segundo grau é a «impureza», isto é, como escreve Kant «[…] a inclinação para misturar móbiles imorais com os morais (ainda que tal acontecesse com boa intenção e sob as máximas do bem).» (35) Por fim, o terceiro grau de propensão para o mal, segundo Kant, «[…] é a inclinação para o perfilhamento de máximas más, i. e., a malignidade da natureza humana ou do coração humano.» (35) Trata-se no fundo daquilo a que Kant chama «perversidade do coração humano, porque inverte a ordem moral a respeito dos móbiles de um livre arbítrio e, embora assim possam ainda existir acções boas segundo a lei (legais), o modo de pensar é, no entanto, corrompido na sua raiz […].» (36)

Não nos causa qualquer dificuldade ver aqui Teodorico Raposo. Que ele seja um homem mau não nos causa quaisquer embaraços ao pensamento, mas como acusá-lo de «mal radical». O mal radical, segundo Kant, não se prende com a gravidade do acto em si, mas com a consciência dele ou, se preferirmos, com a sua premeditação e inversão do sentido moral. Escreve Kant, em A Religião dentro dos Limites da Simples Razão: «Este mal é radical, pois corrompe o fundamento de todas as máximas; […] deve, no entanto, ser possível prevalecer [sobre o mal], uma vez que ele se encontra no homem como ser dotado de acção livre.» (43) O que está aqui em causa, para Kant, é que, e passo a citar: «Nesta inversão dos motivos, graças à sua máxima, contra a ordem moral, as acções podem, apesar de tudo, ocorrer de modo tão conforme à lei como se tivessem promanado de princípios legítimos […]» (42) É aquilo que vimos hoje acontecer com os bancos, com as offshores, por exemplo. Quando fazemos o mal, conscientemente, mas o justificamos com a lei. É aquilo a que Kant também chama «radical perversidade do coração humano». (43)»

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Lá atrás

Valério Romão no Hoje Macau (11 Outubro 2021)

«Eu vinha de Albufeira e fui morar para uma casa típica perto de Santa Apolónia. Quatro quartos – começámos com três, mas pobretanas como éramos, rapidamente prescindimos da sala para dar espaço a outra pessoa –, uma cozinha, uma casa de banho. Vínhamos todos do Algarve. Lisboa era apetecivelmente enorme e havia tudo o que não havia em Albufeira: teatros, cinemas, livrarias, alfarrabistas, a noite com todos os seus espaços e possibilidades, um sem-fim de raparigas bonitas, de amigos por descobrir, de gente com quem traçar tangentes a caminho do trabalho final de curso. Filosofia. Depois do final do curso, não se adivinhava uma saída profissional que não o ensino ou a árida e insegura carreira académica. Felizmente, nessa altura era-se demasiado tonto para equacionar devidamente as consequências. Há coisas que, felizmente, só fazemos porque não sabemos mais.

A casa estava quase sempre desarrumada, a loiça quase sempre por lavar. Cada um retirava com basto nojinho o prato, a faca e o garfo que ia utilizar, lavando-os tão bem quanto sabia para no final da refeição os deixar no lava-loiça, novamente sujos, novamente à espera do desespero do próximo esfomeado. Era uma baderna masculina sem qualquer tipo de romantismo salvífico.

A coisa boa dessa impreparação para a convivência, para a idade adulta e para as coisas dos adultos, fruto também da forma como cada um tinha crescido e sido educado, era a possibilidade de, longe e com medo, cada um se reinventar sem ninguém fosse capaz de fazer luz sobre a inconsistência da criatura face ao seu passado. De repente, tudo quanto eu via reflectido no espelho da minha interioridade – e não gostava – era passível de ser mudado (claro que não o era, mas muita coisa é-o e não o fazemos por conveniência ou medo).»

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