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A memória de Yokohama -III

Luís Carmelo no Hoje Macau (17 Setembro 2021)

«Os cientistas entraram de rompante no quarto. Envolveram silenciosamente a mulher e ouviram-na, enquanto passava as mãos pelo corpo inerte de Laurentino: “Meus senhores, a mais longa fase do projecto acabou neste momento. Como sabem, estamos face a uma experiência sem precedentes.”. A mulher abriu depois o peito de Laurentino, premindo na ondulação junto ao externo e continuou: “há três anos apenas, era difícil imaginar que esta mistura de circuitos, cabos, fibras conectoras, chips e sobretudo os quinhentos biliões de conexões interneuronais pudessem ser programados desta maneira”.

A mulher, afinal a directora do projecto há quase dois anos, falava com entusiasmo para os cientistas que enchiam o quarto do hotel da Fortaleza do Guincho e, num aceno rápido, acabou por abrir uma das válvulas do dorso e retirou o mais esperado dos artefactos, parecia uma caixa de fósforos com um cilindro em miniatura na parte inferior. E disse, com gravidade, a voz metálica e cheia de eco: “É a caixa azul do nosso robô!”. “Podemos finalmente ver as imagens que foram produzidas na mente do Laurentino?”, perguntou um dos assistentes.
“Claro”, concordou a mulher.»

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Elogio da Insónia

Nuno Miguel Guedes no Hoje Macau (15 Setembro 2021)

«Antes de receber a vossa compaixão e solidariedade por esta condição devo avisar: francamente não sei ainda se a insónia crónica é um flagelo ou uma bênção. A sério. Sei que, naturalmente, estar privado de sono tem consequências físicas e psicológicas a que se deve estar atento; sei também que a ciência farmacêutica se esmerou em encontrar indutores de sono que ajudam, pelo menos no momento. Mas no que diz respeito a esses amiguinhos, dou-me mal. A minha morfologia – diagnosticada pelos melhores especialistas com a classificação científica de “flor de estufa” – faz com que meio comprimido destes soporíferos químicos me transforme no dia seguinte num potencial protagonista de The Walking Dead. E isso não é bom. Prefiro a solução preconizada pelo grande W.C . Fields: “A melhor cura para a insónia é dormir muito”.

Então resta o primeiro dilema: flagelo ou bênção. E amigos, optei pela segunda. Enfrento a vigília forçada não como um castigo mas como uma oportunidade, mesmo que às vezes cruel. A insónia é uma lupa errática, imprevisível.

Mais do que uma ausência de sono é um excesso daquilo que está adormecido. Somos nós e o que sentimos no meio de uma casa de espelhos que nos reflectem com todas as distorções. É uma batalha terrível mas necessária com o monstro que está escondido nas horas em que estamos despertos e funcionais: a lucidez, resultado da suspensão da suspensão da vida que é o sono. No limite o que a insónia nos dá, à bruta e de forma contraditória, é ao mesmo tempo a consciência da nossa condição humana e, infelizmente, a consciência da nossa condição humana.»

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Carga d’água

João Paulo Cotrim no Hoje Macau (15 Setembro 2021)

Parque Eduardo VII, Lisboa, sábado, 4 Setembro

Vão passeando os numerosos cães e os comentários, uma ou outra palavra de incentivo, mas também piropos grosseiros e passagens ao largo para evitar encontros de maus fígados (as máscaras poupam alguns da má cara).

Quase se perdeu o hábito de saudar quem está ali de pé ao serviço, de súbito transparente. Também se atiram dúvidas que tamborilam com o pó ininterrupto sobre as capas da livralhada: conselhos de leitura, acerca de um autor, de planos, mas a pergunta campeã, de longe, tem a ver com preços baixos e ainda mais descontos, com a adesão à mística Hora H. Tantos anos a inundar mercados com ideias acocorados dá nisto: saldos como modo de vida.

Não páram de crescer, assim eucaliptos, as editoras-taxímetro: pague que nós publicamos, resmas de restolho, sem fogo, mas esperando arder, com autores impantes e abandonados, uns em afogadilho, mas outros em celebração de selfiem-família. O negócio das identidades terá sempre por onde crescer: quem serei eu sem autorretrato ao instante, sem assinatura, sem opinião firme e hirta.

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Inês Fonseca Santos e Luís Carmelo finalistas dos Prémios PEN 2021

Inês Fonseca Santos, na poesia, com «Os Grandes Animais», e Luís Carmelo, com «Cálice». são finalistas dos PRÉMIOS PEN 2021.

Lisboa, 15 set 2021 (Lusa) – Hélia Correia, José Luis Peixoto, José Gil, Cristina Robalo-Cordeiro, José Eduardo Agualusa e Isabel Rio Novo estão entre os 15 finalistas dos prémios PEN 2021, nas áreas da poesia, ensaio e narrativa, que foram hoje anunciados.

Em comunicado, o PEN Clube Português anunciou que a seleção de finalistas à edição deste ano do prémio de poesia inclui os escritores Hélia Correia, pela obra “Acidentes” (Relógio D’Água), Inês Fonseca Santos, por “Os grandes animais” (Abysmo), José Alberto Oliveira, com “Rectificação da linha geral” (Assírio & Alvim), José Luís Peixoto, com “Regresso a casa” (Quetzal), e Pedro Eiras, com “Inferno” (Assírio & Alvim).
Na área do ensaio, os finalistas são Cristina Robalo-Cordeiro, e a sua obra “O véu de Maia – Relendo Almeida Faria” (Minerva Coimbra), Dora Nunes Gago e o livro “Uma cartografia do olhar – Exílios, imagens do estrangeiro e intertextualidades na Literatura Portuguesa” (Húmus), João Dionísio, com “Agora entra no vento – Tradução e génese na obra de M. S. Lourenço” (Biblioteca Nacional de Portugal), José Gil, pelo ensaio “O tempo indomado” (Relógio d’Água), e Ricardo Gil Soeiro, com “A sombra que ilumina – A poesia de António Franco Alexandre” (Tinta-da-China).
Finalmente, no âmbito do prémio de narrativa, estão selecionados os escritores Luís Carmelo, com o seu livro “Cálice” (Abysmo), José Eduardo Agualusa, pela obra “Os vivos e os outros” (Quetzal), H.G. Cancela, com “A Noite das Barricadas” (Relógio d’Água), Isabel Rio Novo e o romance “Rua de Paris em dia de Chuva” (Dom Quixote), bem como João de Melo, com “Livro de Vozes e Sombras” (D. Quixote).
No ano passado, os prémios PEN para narrativa, poesia e ensaio, no valor de cinco mil euros cada, distinguiram Francisco José Viegas, Nuno Júdice e João Barrento e Maria João Cantinho.
O prémio de narrativa foi para o romance “A luz de Pequim”, de Francisco José Viegas, o de poesia foi para “O coro da desordem”, de Nuno Júdice, e o de ensaio (‘ex-aequo’) para a “Uma contra-música. Novos escritos llansolianos”, de João Barrento, e “Walter Benjamin. Melancolia e Revolução”, de Maria João Cantinho.
Os Prémios PEN são uma iniciativa que conta com o apoio da Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB).
Portugal faz parte do PEN Club International desde 1979, sendo o Clube de Poetas, Ensaístas e Novelistas (PEN) a maior e mais antiga organização de escritores, a nível mundial – numa iniciativa datada de 1921 -, levada a cabo por autores ingleses.

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Uma ocasião

Nuno Miguel Guedes no Hoje Macau (8 Setembro 2021)

«Não sei porquê. Sei que nesta altura – e são onze da manhã, desperto, descansado e sem desculpas – preciso falar do meu Avô Nabais. Melhor: porquê já sei mas só o direi no fim. Para já, descubro a causa neste paradoxo: quanto mais velhos mais remotas as memórias. Ou seja: não sei qual foi o meu pequeno-almoço mas lembro-me vividamente das cores e imagens dos meus doze anos. E aqui vou percebendo, à medida que escrevo. O meu Avô Nabais foi a primeira perda próxima que tive, o primeiro choque verdadeiro com a mortalidade a que me fizeram o favor de me poupar.

Só que, lá está: se existe condição exclusivamente humana que nos redime ao mesmo tempo que nos condena é a memória. Neste caso pouco me importa o desfecho. De repente vejo-me num pequeno jardim de Inverno, numa varanda da Rua Passos Manuel, em Lisboa. A minha Avó cultivava nessa varanda toda a espécie de plantas e era aí que o meu Avô gostava da minha companhia. “Zé, senta-te aqui”. O porquê de me chamar “Zé” não sei; nunca, que me lembre, terá pronunciado o meu nome próprio. Mas pouco me importava: ia e ouvia, deliciado, as suas histórias.

Raiano, nascido e criado na aldeia de Vale de Espinho, na Beira Baixa, veio para Lisboa porque era um dos destinos que lhe ofereciam – o seminário ou a cidade. Preferiu migrar para servir como marçano e a partir daí chegar ao que nunca mostrou ambição de ultrapassar: empregado de escritório. Mas com ele vieram as histórias fantásticas de caçadas de javali, o contrabando, o trânsito clandestino de voluntários para a Guerra Civil de Espanha (e, coisa inadequada aos nossos dias: o Avô era monárquico via franquista, coisa que só muito mais tarde vim a saber), as descrições das casas graníticas e tantas outras aventuras que invariavelmente começavam assim: “Uma ocasião…”.»

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A Memória de Yokoama – II

Luís Carmelo no Hoje Macau (3 Setembro 2021)

«Laurentino lembrava-se de ter levado a mulher para dentro do átrio onde se erguia o antigo armazém da fundição. Laurentino lembrava-se de ter passado a correr com a mulher pelo cedro libanês que tinha ramos de bruxa e pela alfarrobeira imobilizada num repto da natureza. Laurentino lembrava-se de que tinham os dois passado pelas ruínas da vagoneta e do torno, para depois entrarem finalmente no armazém. O portão deslizou sobre carris negros e ouviu-se um som metálico e seco, um bramido pálido e oco. A mulher sentou-se no chão a um canto e tentou respirar fundo. Chorou depois compulsivamente e apenas dizia e repetia: “Eu sei coisas a mais. Eu sei coisas a mais. Eles vão matar-me. Ou uns ou outros. Ou uns ou os outros”.

Lembrava-se de ter saído até ao cais, enquanto a mulher dormia no interior de um vestíbulo abandonado da fundição como se estivesse calafetada e defendida pela escuridão. Laurentino lembrava-se de ver dois carros pretos a estacionarem ao pé do cais de onde saíram vários homens de cabelo rapado que telecomunicavam entre si. A banda tocava com vivacidade meteórica e os chapéus dos músicos pareciam tendas de linho expostas à poeira avermelhada do Negueve. A pequena multidão acercava-se das barracas de comes e bebes, dos cachorros de peluche, dos ursos de focinho branco, dos palhaços ruidosos, das tendas de tiro, das tabernas improvisadas e do homem-estátua que mais parecia um bobo convulsivo esboroado em aguarela ocre e azulada. E, nessa altura, mais por intuição do que por temor, Laurentino regressou subitamente à fundição atravessando um caminho secreto e remoto que conhecia do tempo das brincadeiras de criança.

Tudo havia sido preparado.

Lembrava-se, por fim, de ter colocado a mulher dentro de um tapete turco. Por cima do rolo improvisado, encheu o jipe de latas, restos de cadeiras, dossiês comidos pelo bicho, hastes de candeeiro, jarros, molduras de fotografia, zincogravuras, cortinados, roldanas, ferramentas carregadas de ácido e um ou outro varão de cobre. Vestiu um fato de macaco a cheirar a podre e saiu da aldeia em direcção às alturas.

Lembrava-se agora de circundar mais uma vez estas estradas muito íngremes. Levava o coração a ribombar, a tremer e revia assim a vertigem dos vales fendidos pela corrosão dos glaciares. Por trás, nada. Nem viatura, nem vivalma, nem sinal de perseguição. A fuga parecia perfeita. A mulher mal conseguia respirar e o tempo passava, lento e perigoso, como leme de veleiro no meio de súbita tempestade. Laurentino lembrava-se de ter andado quatro dias e quatro noites sem parar, a não ser para comprar gasóleo, água e bolachas de água e sal. E foi já num país que parecia Espanha, num descampado tipo aragonês, que Laurentino se lembra de ter livrado o carro de tanta porcaria.

A mulher, completamente tonta e inundada por ansiolíticos, sentou-se a seu lado e não disse água vai água vem durante várias horas.»

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As viagens de Gulliver – Sétima e última parte

Paulo José Miranda no Hoje Macau (2 Setembro 2021)

«Veja-se então como se dá a aproximação deste livro de Swift à Alegoria da Caverna de Platão. Comece-se pela distinção entre opinião e razão (traduza-se assim o ponto de vista contrário à opinião). Na última parte do livro de Swift, a opinião aparece como apanágio dos humanos e a razão como apanágio dos houyhnhnms. E este povo de cavalos não conseguia compreender sequer como era possível existir a opinião. Não conseguiam compreender porque eram completamente racionais, e segundo a razão não há lugar para a opinião, tal como na filosofia de Platão. O oposto de pensar é opinião, doxa. O mundo da doxa é, na verdade, o mundo das sombras, o mundo dos escravos que vivem acorrentado na caverna, longe da luz do sol, longe do ponto de vista das ideias. Mas aonde é que em As Viagens de Gulliver se dá essa passagem decisiva para a alegoria da caverna de Platão? Aonde a podemos identificar claramente?

Começa no final do capítulo X, quando está anunciado o regresso de Gulliver a casa. Leia-se: «[…] como podia pensar em acabar os meus dias entre yahoos, caindo de novo nos meus velhos hábitos de corrupção por falta de exemplos que me conduzissem e mantivessem no caminho da virtude?» Está aqui identificada precisamente a última parte da Alegoria da Caverna de Platão, a impossibilidade do regresso à caverna por parte daquele que viu a luz do sol, isto é, aquele que viu a realidade do mundo, a realidade das coisas e de si mesmo. Em A República, livro VII, entre 514 a-517 d, Platão introduz a célebre Alegoria da Caverna. Há três momentos fundamentais nesta alegoria: 1) a descrição da situação dos prisioneiros; 2) a libertação de um dos prisioneiros; 3) o regresso do prisioneiro à caverna e ao convívio com os outros prisioneiros.

Veja-se o primeiro momento, que nos configura a situação dos prisioneiros. Eles estão presos com correntes de tal modo que não se conseguem mover, nem a cabeça, de frente para uma parede da caverna; no lado oposto da caverna estão instaladas enormes fogueiras e perto destas há um caminho que liga a caverna à superfície e por onde passam os habitantes da mesma que detêm os prisioneiros. Este caminho situa-se numa posição mais alta do que a dos prisioneiros e os habitantes ao passarem no caminho, devido à luz das fogueiras, projectam as sombras na parede em frente aos prisioneiros. Aqueles prisioneiros sempre estiveram ali, acorrentados, não conhecem outra realidade se não as sombras projectadas na parede e o som que escutam por detrás deles. Assim, eles discutem entre eles as sombras que vêem, prevendo o que se irá passar, analisando o que se passou, etc.. E há entre eles alguém que consegue fazer isso muito melhor do que os outros e é invejado ou admirado pelos outros. É esta a situação dos prisioneiros que, como se vê, não está distante da situação de Gulliver antes de ter encontrado o povo de cavalos. Gulliver, ele mesmo reconhece, embora por outras palavras, que sempre viveu numa espécie de caverna, onde o que via e julgava ser a realidade não passava de sombras.»

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Prova de vida

João Paulo Cotrim no Hoje Macau (1 Setembro 2021)

«Eduardo VII, Lisboa, quinta, 26 Agosto

Ei-la que chega, impante, a Feira do Livro. Muito por culpa do comunicado da APEL, que nos atribui estatuto de novedio, o Público (https://www.publico.pt/2021/08/26/culturaipsilon/noticia/feira-prova-vida-editoras-1975265) abre a sua peça connosco e dá azo a um sem número de mensagens, sinceras e fingidas e mais um leque de matizes onde se exercita o humano. Que importância ganham estes detalhes, o de ser a primeira vez que erguemos barraca a solo em evento que nos desgosta e de um jornal apontar lanternas a isso? Pouca. As autoridades alegram-se com a dimensão, atiram números, muitos números, sempre a somar, enchendo bocas e cabeças com o cultural, mas é de comércio que se trata. Vem daí mal ao mundo, que se venda livros? Nem por isso, mas quando toda a estratégia assenta no preço, nos descontos, nos saldos, nos livros do dia, na Hora H, esse convite à especulação, e outras invenções do demónio, acabamos por deixar claro que o interesse não será exactamente a promoção da leitura.

Atraímos passeantes, muitos, muitos, com pipocas e hamburguesas e saladas saudáveis e cerveja artesanal em versão bem-pensante de feira popular. Onde se assinala aqui o movimento emergente das novíssimas pequenas ou nem tanto editoras, nadas e criadas por estes dias de fim do mundo? Por que raio continuam a chamar espaço dos pequenos editores a uma tenda de saldos? Pormenores, de novo, ainda que simbólicos. E nem nos devíamos queixar, pois somos associado silencioso e nada participante, mas não deixamos de reflectir. Enfim, entrámos aos 10 anos de idade, no comunicado e na Feira, graças à crise que baixou a níveis razoáveis o alugar do pavilhão que forrámos com títulos desafiantes.

Diz o fraque e a cartola, façamos montra, cais de vidro, ponto de encontro, partidas e chegadas sem horários, livros-mala-de-viagem, livros-abrigo, livros-navio. Soubera eu como, filmava cada reacção: ao acontecer dos volumes por junto, tantos e tão poucos, as colecções que só se adivinhavam, a riqueza das capas, as que parecem tão antigas quanto as vanguardas, dos ziguezagues e piscadelas de olho ao leitor, sem o estupidificar, convites a entrar no jogo, com «buracos», sem capa, sem letra alguma a não ser na lombada, cores e formatos, volumes irmanados por folha, imagens de um lado e do outro poemas, os que se desdobram, recolhidos em caixa. Leitores das muitas identidades, é entrar, entrar, que temos ainda temas ocultos na voragem, o agreste e o difícil, o melancólico e o resto, imenso e movediço.

Uma década a dizer nas entrelinhas: bons títulos – assim diz o cartão instagramático. Não está acontecendo, mas esta celebração desejava-se menos prova de vida, mais atirada para o renascer do que o soprar das cinzas, mais árvore e, portanto, vergôntea. Quem sabe, se com as chuvas.»

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Da discrição

Valério Romão no Hoje Macau (31 Agosto 2021)

«Como todos os portugueses que visitam o Brasil pela primeira vez, eu ia carregadinho de preconceitos e de medo. A América do Sul é geralmente bastante mais violenta do que Portugal. Uma pessoa que veja um par de documentários sobre o Rio de Janeiro fica imediatamente em alerta. Os meus amigos brasileiros, em chegando a Lisboa, levavam umas boas três semanas a perder os hábitos de segurança do Rio. Queria muito conhecer «a cidade maravilhosa», mas ia cheio de miúfa.

Levei roupa velha, discreta. Uns calções horríveis que nunca uso a não ser nas poucas vezes que vou à praia. Umas t-shirts rotas para as quais ninguém olharia duas vezes. Umas sapatilhas de boca aberta para calçar à noite e umas havaianas para usar de dia. Nota: eu odeio chinelos e calções de qualquer espécie. Custa-me disfarçar o desprezo e o asco que sinto quando os meus amigos aparecerem nesses preparos. Um homem não usa chinelos e/ou calções. É indigno.»

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A memória de Yokohama – I

Luís Carmelo no Hoje Macau (26 Agosto 2021)

«Lembrava-se de ver, há muitos anos, a imensa calote de betão a crescer entre penhascos e a massa húmida dos pinheiros. Parecia uma esfera de luz apoiada sobre ogivas metálicas com a magia daqueles arco-íris de trezentos e sessenta graus que se formam nos desfiladeiros da serra. À volta havia bandos de jovens vestidos de gabardina amarela, ramos de flor na mão, letras inflamadas e violas adormecidas nas mochilas que faziam coro grego de protesto face a este soberbo leviatã onde, um dia, os núcleos dos átomos haviam de ser cotejados. A imensa construção projectava-se para além da barragem e dava à região um raro vigor de alma material, um rosto porventura excessivo e uma panóplia variadíssima de habitações pré-fabricadas onde centenas de operários vindos de muito longe entravam e saíam do formigueiro da terra.

Lembrava-se da falésia de xisto escuro que descia a pique entre nascentes e juncos. Era um precipício criado por blocos de granito tão soltos quanto a velada gaguez da mulher que o avistara, há dias, no check-in do aeroporto. Tinha sobrancelhas grossas, o rosto esguio, cabelos encaracolados, os dedos finos e não deixava de evocar estas fragas desenhadas pelo abismo onde luziam os sinais mais simples dos deuses.

Lembrava-se de ouvir os sinos ao vento, eram campainhas que estavam presas aos ramos da indolente alfarrobeira e do espesso cedro libanês e que ressoavam ante a presença da lua nova e dos vendavais que redemoinhavam entre os muros do átrio onde havia argolas para burros, restos de um torno metálico coberto por uma camada de ferrugem esverdeada e uns tantos vasos esvaziados, embora pejados pela memória dos gerânios e das folhas enroscadas dos gladíolos.

Lembrava-se das águas escurecidas da barragem, desse verde vago de correntes brevíssimas onde o ofício dos remos e os braços abertos dos remadores limavam a sede do tempo. Visto do alto do precipício, era um movimento lento, vagaroso, bastante sincopado. Era como a miniatura de um limbo que progredia do paraíso esquecido até à sombria mansidão que rodeava o pequeno cais da aldeia. Aí, sobre o que sobrava do velho coreto, estava perfilada a banda de uniformes brancos como se fosse um insecto minúsculo cheio de tentáculos esponjosos e envolvido pela espessa poeira avermelhada do fundo da terra.»

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