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Abysmo no Folio

Há um Cadáver Esquisito que bebe cerveja, Pedro Miguel Silva (Deus me Livro, 20 Outubro 2021)

Do activismo de Jean Moulin ao fio de Ariadne, Pedro Miguel Silva (Deus me Livro, 18 Outubro 2021)

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Tropeçar parado

João Paulo Cotrim, no Hoje Macau (25 Agosto 2021)

Horta Seca, sexta, 6 Agosto

São que nem moscas, as coincidências. De pouco serve sacudi-las (saudades dos verões em que me perdia a vê-las em nuvem no centro das assoalhadas). No exacto momento do reencontro com o Mário [Gomes], o frigorífico que me acompanha desde o século passado resolve resolver-se, como quem diz, desistir. Ora na sequência de uma das conversas com que atravessamos densas planícies e afastadas geografias, lamentando-me eu de não ter atingido a compreensão leitora com o alemão escolar, impedindo-me, portanto, de mergulhar nos seus romances e outras experiências, o Mário propôs-me primeiríssima e prometedora versão de uma «Elegia do Frigorífico». Cruzando ensaio a mostrar costuras e autobiografia a escondê-las, com mestria e ritmo alucinante, interroga-se sobre «o coração da casa», o mais importante dos electrodomésticos da vida moderna (estou confuso, com tanta treva: moderno é hoje?). Será ficção, mas o real exige-nos que os planos se cruzem. São que nem abelhas, as metáforas.

Úteis e quase sempre amistosas. Ou me engano muito ou estará bem conservada em «no frost» esta do frigorífico enquanto modernidade, extensão da habitação, a técnica que conserva a natureza, elemento unificador, termómetro de muitas saúdes. O texto pensa e transpira, o texto ri e dá prazer. O texto desmultiplica-se em micro-histórias, pequenos cubos refrescantes, sonhos. «(Sonho muitas vezes com textos, mas nunca é fácil reconstituí-los depois de acordar. Se me treinasse em sonhos lúcidos, talvez pudesse escrever livros inteiros plagiando os autores imaginários e menos imaginários que escrevem os livros que leio nos sonhos. Seria o crime perfeito.)» A língua resistirá aos ataques de links e hiperlinks? E que uso dá a arte aos móveis do gelo? De que modo vivemos o que habitamos?

«Argumentos contra o frigorífico há muitos, embora não me venha à cabeça nenhum que seja estritamente de ordem estética. Achar que o frigorífico é um objecto pouco bonito, afirmar que não há drama humano no frigorífico, ou suster que antes do frigorífico também nunca houve nenhuma grande obra de arte em que o protagonista fosse um baú ou um lavatório: nada disso são argumentos estéticos, mas apenas o reflexo de falta de sensibilidade. Objecto estético pode ser tudo. Deve ser tudo. Se não andamos sempre às voltas com as mesmas coisas.»

Dei-me por mim, uma noite destas, a lamentar não me ter despedido devidamente – o que quer que isso pudesse ter sido – do Zanussi antes da chegada deste Samsung, redondo a roçar o sensual e sem precisar de produzir massas de gelo para manter o fresco essencial.

Europa, Lisboa, terça, 17 Agosto

O projecto que me riscou o segundo fechamento, o «Diário das Nuvens» (https://abysmo.pt/diario-das-nuvens-de-joao-francisco-vilhena-e-joao-paulo-cotrim/), se por um lado me obrigou a um exercício nunca antes praticado de escrita diária, acabou sendo álibi para o crime exemplar de adiar as tarefas que, apesar do fim do mundo, floresciam assim ervas daninhas. No final daquelas voltas aos 80 dias, sobravam malas por desfazer e roupa para arejar, pdf para carregar e filmes por terminar, de modo a fazer a ligação ao que se seguiria: livro e exposição. A abertura foi depois fissura na barragem e não pararam mais de fluir afazeres em cima da apatia que se erguia montanha rochosa.

Passaram-se meses sem me atrever a voltar ao assunto, aliás, os meses passaram pelos assuntos todos expondo-os em ferida. Até que. Os braços dos moradores de quintos andares estreitaram-se ali a Campo de Ourique, sem batalha nem milagre. Resolvemos resistir à tentação de redefinir o conjunto, limpando arestas, mas com isso perdendo espontaneidade. Dobra aqui, dobra ali, logo o livro e depois a exposição – com primeira e entusiasmante paragem na Livraria de Santiago, em pleno Fólio – ganharam as formas de origami. Para não variar com o João [Francisco Vilhena], lançou-se sobre a mesa cubo de ideias capazes de quebrarem o quebranto, ainda que os planos não parem de brotar em pantagruélico excesso. São mais os olhos que a barriga.

Tomei balanço e fui, então, saltar de nenúfar em nenúfar a ver até onde me mantinha em andamento e para dedicar, já agora, leituras aos objectos capturados e ao que continham de olhar do artista, pois o propósito foi sempre o de entrar na pele e perspectiva das nuvens (estranho não se terem queixado do atrevimento em horas de «cancel culture»). O telefone vibra em descontrolo, ignoro-o com assustadora facilidade e teimo em fixar-me no retrato #70 (algures na página). Que dizer?

«Continua sem prazo de validade a ideia peregrina de que a fotografia se limita a mostrar a bruta realidade, mais real que o real. Tanto nos dá acesso ao que não descortinávamos, no caso do instante pertencer à própria substância do movimento, aquele entre-gestos de que o olho preguiçoso não carece para interpretar a coreografia. E ainda aquela fixidez marmórea permitirá doravante detectar em autópsia os detalhes que nos abrem acesso de corpo inteiro ao que acontece. Pois finge tão completamente que chega a fingir a realidade que deveras vai sendo. Estes tons outonais de souto a celebrar a luz parecem indicar aquele precioso momento do pôr-do-sol. Um dia de cada vez, outra vez. A luz que tomba esvai-se, não indo no real que se esconde no real. Não deixa de conter artimanhas de começos que sobem da raiz do negro aos azuis, os quais, por sua vez, parecem querer dobrar-se sobre andrajos amarelos que fogem, que se soltam, que se desfazem. Que esconde tal comércio das cores entre si e com a luz?

Depois os confins surgem líquidos, indefinidos, insistindo na imaterialidade do conjunto. Alguma vez a pintura se acaba? Se fosse quadro tinha fronteira. Há metafísica bastante e portanto nenhuma em sacrificar a agitação dos afazeres à réstia sublime do desperdício.”

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Vil e apagada tristeza

João Paulo Cotrim, no Hoje Macau (7 Abril 2021)

Santa Bárbara, Lisboa, segunda, 6 Abril

Lisboa – que nunca foi de se esplanar ou jardinar e perdeu aquela maneira de se viver cidade nas praças-catedrais que são os grandes cafés – está sentada no meio da rua a celebrar a Primavera do seu descontentamento. Os indicadores postos em gráficos e nas opiniões médicas que governam as nossas vidas de doentes por acontecer mandaram entreabrir. A impaciência empurrou portas, janelas e postigos, afinal forma de abrir no fechado. Dizem que seremos salvos pelo tamanho do intervalo, da interrupção do toque e da conspiração. O mundo parece disco riscado e o mais provável será o regresso à casa de partida que arrisca coincidir com a prisão. Exagero, claro, excepto para os mais velhos, que perderam as migalhas de autonomia e estão arrumadinhos em casas-forte de acrílico. E a da Gadanha anda em azáfama tamanha que arrisca esquecer-se de um ou outro que a chama em tonitruante silêncio deixando de comer. Queima esta coisificação dos nossos queridos velhos.
«Atentava naquele turvamento de palha-de-aço pousado em mãos ambas: curiosas formas têm as nuvens de arder. Tivera sucedido em papel desenhado e o aludido ganharia o desconchavo que as partículas em suspensão assumem quando se dá a ver o pensado. Naqueles espelhos enxertados em céu são sempre múltiplos os estratos, o roçagar das quase esferas expandindo-se em inquieta imperfeição, com rugas e refêgos a cambiarem de lugar, o ténue brincando com o sombrio. Atravessam as configurações das coisas como se fossem atalho. Brotam das paredes e acorrem a colhê-las com a palavra salitre. Se o azul perdura no lápis-lazúli, as nuvens reencarnam nas trufas: assim se deixam alcançar. Está em vias de extinção a arte que reivindicava a sua captura e domesticação, que parece sobreviver tão só na prerrogativa dos zangados. Vil e apagada tristeza, esta do bom tempo estar condenado a ser sem nuvens.»
Por causa do «Diário das Nuvens», tenho tido os dias contados. Com este acabado de passar pelos seus olhos, leitor, faz oitenta que começámos a brincadeira do toma lá nuvem, mete-lhe partículas dentro e vai estendê-las na rede a corar. Tal o cão com o seu invejável afinco atrás da causa, pus-me atrás das palavras. As leves soltam-se, as pesadas estrumam. Muitos destes poemas em prosa brotaram, pétala e espinho, copa e raiz, das tonalidades que cada palavrinha de nada pode conter. Atentemos na palavra coisa: parece nuvem de tanto lhe caber. O desgaste da oralidade, mas também as fendas que suscita, deram uma ajuda neste trabalho oficinal. Ficam por arrumar várias ferramentas como a repetição ou o neologismo metido a martelo. Tenho que lhes pintar a sombra na parede para que conheçam o sítio de repouso. Por falar em genética, a cidade e a casa cruzaram-se nas atenções. Certa canção diz que a casa é onde dói mais. Esta cidade dói-me no peito. Devia dizer como alguém próximo nos diz: não te metas na minha vida, não entres em mim. Já vai tarde. Outras criaturas suscitadas ficam por ora em sossego, por junto com mais obsessões de trazer por casa. A proximidade forçada não significará ossatura de domésticos frankensteins, colagem de avulsos. Valeu pontos também o ensaio, aquilo que se dá quando alguém pega no objecto procurado com energia e inteligência repetidamente treinadas, evita as investidas de cada um para lho roubar ou impedir progressão, e passa o risco. Em outra disciplina cumpre-se na tentativa de atirar projéctil de peso bem medido além da linha, o conjunto circunscrito à secção de uma circunferência por completar. Jamais pensei que a geometria, mais ou menos descritiva, se tornaria companheira. Passei a vida a traçar linhas de terra invariavelmente sujas, portanto dignas de punição.

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Nefelibata de trazer por casa

João Paulo Cotrim no Hoje Macau (10 Março 2021)

«Santa Bárbara, Lisboa, sábado, 6 Março
A parada e resposta do Diário das Nuvens dura há 50 dias. Se soubesse extrair uma raiz do quadrado diria que nunca antes tinha estado tanto tempo a escrever ininterruptamente. Se me ficasse pela leitura faria melhor ao ecossistema, mas perdoe-se o mal que faz pelo bem que (ainda) sabe. Celebrámos a brincadeira com uma antologia em versão lençol que me pôs logo a sonhar com variações na pele de Lisboa: https://abysmo.pt/diario-das-nuvens-de-joao-francisco-vilhena-e-joao-paulo-cotrim/ O entusiasmo promete para já variações mais fílmicas, mas a brincadeira tornou-se caso sério. Surgem reacções comoventes, onde cada peça se revela espelho ou consolo. Além da partilha de interesses e trabalhos artísticos em torno destes fascinantes habitantes dos céus. Para celebrar a data redonda atropelei a regra e olhei por breves instantes para o miradouro (junto vai a visão correspondente do João [Francisco Vilhena]). As nuvens também se avistam umas às outras.
«Pare, escute, olhe. Na passagem de nível sem guarda que se atravessa, a paragem passou a ser um sexto sentido muito. Nas camadas superiores está posto trânsito dos diabos. As raivas que se condensam em rangentes nuvens dentatas não respeitam nada. Ao passo que as robustas saudades acumulam-se pacientando pela queda do sinal verde na passadeira vermelha. Os enxames de cristais de gelo circulam indiferentes em contra-mão. Andam praí a cuspir nuvens da boca para fora. Vai daí a locução própria do nível informal atrai cada vez mais praticantes. É vê-los equipados com desvelo a velar zelosamente pela nuvem de palavras. Um toque dá acessos e conta as vezes. Atracção fatal pelo artificial, a dos fazedores de chuva. Uma gaze mais não é senão nuvem feita tecido trocando consolo pela tintura do sangue. E quem chamou nuvem turva à primeva ecografia, primeira Eva?»

Santa Bárbara, Lisboa, terça, 9 Março
Perto tem morrido gente, mas também alguns nascimentos se anunciam e nisso sopra leveza. Vem grávido este livro cujo lançamento será gravado hoje, mas para acontecer mais adiante no âmbito do Ronda, o festival de poesia de Leiria (o novo normal bem tenta fintar o tempo). Por estar na colecção Mão Dita, por ser poesia, além do primeiro neste famigeradano, abre ainda janelas primaveris no coração pesadote da abysmo. «Cordão», de Ana Freitas Reis, com capa de Eugénia Mussa, diz como quem dança que o corpo «é um evento apaixonado» e que faz parte do mistério, que a mulher não abdica do seu papel principal, que ainda há lugar para o espanto e o assombro, que Deus faz parte da fauna e flora, que a investigação maior do mundo só pode ser feita pela palavra, ainda que condenada ao fracasso. Canta ainda muita música. Transbordemos portanto, que nem «Pégaso»:

“Só o que gera salva
e tudo o que nasce deixa buraco,
o fino corte da beleza.

Não seremos nunca o pássaro afinado.
Porque o corpo é água viva
e todo o movimento
é duelo contraditório.

O jogo é deixar transbordar
atravessando o corpo.
O campo empírico
tem um modo próprio de pulsar.

Sobram-nos suspiros sob a cintura.
Por instantes liberta-se
o fardo empoleirado aos ombros
dando um salto que não depende
do porte do cavalo.”»

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Quero é dançar na chuva

João Paulo Cotrim, no Hoje Macau (27 Janeiro 2021)

«Cá está novo fechamento, anunciado à náusea, adiado ao limite. Ainda assim, as ruas não se esvaziam. A catástrofe está instalada à razão de um avião em queda por dia, mas nem isso acende as campainhas histéricas dos telexes virtuais. Ou antes, os alarmes são ignorados, por não querermos acreditar na impossibilidade de se viver como habitualmente. Arde-me a casa, mas na vez de tentar apagar todos os fogos, o fogo, entendo por bem arrumá-la.
Nem isso: escolho um gesto minimal repetitivo e nele me instalo, performance silenciosa no escuro. Melhor faria se observasse os mil modos do gato se espreguiçar, harmoniosas odes à potência do salto.
Parceiro de projectos postos em pausa, o João Francisco [Vilhena] desafia-me para um «Diário das nuvens», desconhecendo ainda assim a minha desmedida e diletante atracção por esses fugidios elementos. Que teriam para dizer essas imemoriais companheiras destes nossos pára-arranca? Um dos muito encantos das ditas massas suspensas de água e poeira está em nada dizer. Somos nós que nelas penduramos estados de espírito, tornando-as vestes da tristeza ou da melancolia. O João envia, a cada dia, fotografia de um caso, jogando com luz, composição e a sua leitura do dia. Estou a vê-lo a bater às portas para poder subir às varandas, aos telhados, identificando-se: «é para contar as nuvens». Para contar das nuvens só mesmo palavras, micro-histórias ao sabor da absoluta liberdade, perseguindo ideia ou descascando palavra, descrevendo objecto ou engendrando situação, observando, dentro e fora. Exercício de felino doméstico, arranhar sofás e espreitar visões do vizinho nenhures. As decisões urgentíssimas que continuem presas na sua desesperança prática. »

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A pretexto do «Diário das nuvens»

Nuvens

Em véspera de novo fechamento, rodeados de desgraças e perplexidades, o João Francisco Vilhena, com quem já estava a desenvolver uma boa mão cheia de ideias, desafiou-me para um «Diário das nuvens». Uma fotografia sua do mais enigmático dos elementos trataria de despertar micro-narrativas.«Era a porta da rua. Não do prédio, mas da rua. O exterior, que costumava ser de todos, vedava-se. A ideia encontrava-se entalada no exacto espaço entre entrada e saída.» Estamos nisto à razão de uma por dia em modo absolutamente libertário, forçosamente melancólico. O João desconhecia «Nuvens», a publicação que fizemos, com o Hoje Macau, para a Feira do Livro de Lisboa, em 2019, pelo que resolvi trazê-la a este céu cerrado. JPC

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