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Da Infância

Valério Romão no Hoje Macau (16 Abril 2021)

«Ser-se muito bom aluno não ajuda a fazer amigos. Ser-se muito bom aluno e imigrante é a garantia de que nunca se será convidado para uma festa de aniversário, que nunca se entrará na casa de um dos colegas de turma, que nunca se será seleccionado para um jogo qualquer no intervalo das aulas. A infância, despida ainda do verniz civilizacional que nos torna relativamente toleráveis e tolerantes, é a altura da vida em que um sujeito arranja cicatrizes que se entretém a lamber até ao fim dos dias. Os putos, capazes do melhor e do pior, conseguem ser extremamente cruéis de modo absolutamente gratuito.
O meu pai matriculou-me num colégio de freiras. Como já estava em Clermont-Ferrand há alguns anos e tivera contacto privilegiado com os resultados do ensino público, decidiu esticar tanto quanto possível os cordões à bolsa e proporcionar-me uma educação privilegiada. Eram poucos os filhos de imigrantes na minha escola. Os nativos – os legítimos – já achavam a minha presença pouco condizente com aquilo que era esperado de mim, enquanto filho de imigrantes pobres, em França. Ser bom aluno era apenas acrescentar insulto à injúria. Os filhos dos emigrantes portugueses eram conhecidos em França – com mais ou menos justiça na composição do retrato – por serem uns rufias semi-abrutalhados com apetite precoce por vinho tinto. Os seus pais eram homens e mulheres atarracados, com modos campestres, que resolviam desavenças de vizinhança de machado em punho. Nem eu nem os meus pais correspondíamos ao retrato-robô.
Não me foi difícil escolher entre ficar em França ou regressar a Portugal quando o meu pai me propôs, aos 10 anos, essa escolha (note-se que «regressar» nesse sentido era um conceito vagamente metafísico – como regressar quando nunca foi a casa o sítio para onde se «regressa»?). Nada tenho contra os franceses, muito menos contra os miúdos que, à altura, apenas estavam a ser o que são os miúdos um pouco por todo o lado. Mas eu era tremendamente infeliz em França. Tão infeliz que sair dali para Portugal e chamar-lhe regresso ou para qualquer outro sítio era irresistível.
Que guardo de bom? O sabor das galettes na padaria perto de nós; alguns gestos esparsos mas importantes de amizade e de carinho; a forma como alguns professores olhavam para mim e que me enchia de orgulho e acendia alguma esperança.»

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Atoardas e velocidade

Luís Carmelo, no Hoje Macau (15 Abril 2021)

«Uma vida com uma única velocidade, com um único presente e com uma gramática pura seria a vida ideal. 
Paul Virilio foi um dos autores que mais acentuou o papel da velocidade no modo como edifica o nosso tempo, fazendo dela um misto de milagre e de parábola. No capítulo final de A velocidade da libertação, escreveu a seguinte nota sobre os impactos da energia cinética: “Desde há um quarto de século que a trajectografia substituiu a geografia. Há, a partir de agora, um trajeto independente de toda a localidade, mas sobretudo de toda a localização. Um trajecto inscrito apenas no tempo, um tempo astronómico que contamina progressivamente a multiplicidade de tempos locais” (…) “Da exocentração de um corpo em voo acima do solo, passamos de imediato à egocentração: o centro já não está situado no exterior, é ele próprio a sua referência, o seu eixo-motor”.
 Kundera também glosou o tema da velocidade no romance A Lentidão, fazendo coexistir tempos e personagens muito diversos que contrastam, de modo paródico, com o ‘corre-corre’ ofegante dos nossos dias. Ao invés, Virilio tornou a velocidade na linha de força de todo o seu pensamento, recentrando-se nos mais diversos impactos suscitados pelas acelerações da “omniurbe” global. A deformação (efeito da velocidade), de que as fake news são hoje em dia uma ínfima parte, é uma das metáforas mais interessante para significar a ruptura no espaço que tende, hoje em dia, a ser a ilusão de um tempo irrevogavelmente constituído por sucessivas instantaneidades.
Escrevi sobre o tema há um quarto de século, em Anjos e Meteoros, tentando provar que a instantaneidade não é, de modo nenhum, uma questão actual. Ela começou por ser, nas escatologias e nas ideologias, um campo reivindicativo que exigia o cumprimento imediato e sem esperas das grandes promessas (os fraticelli, no início do século XV, e os militantes soviéticos de Kronstadt, no início do século XX, exigiam, no fundo, precisamente o mesmo). Na actualidade tecnológica, esta aspiração de cumprimento instantâneo deixou de ser uma reivindicação dirigida a um além (teológico ou ideológico, tanto faz) para passar a ser, no essencial, uma forma de vida fria e afastada das grandes causas. Carregar no ‘on’ e ver realizado um desejo imediato sublima e ilude esse cumprimento associado a devires superiores. É a felicidade da redenção a descer do céu à terra de modo inapercebido e invisível. »

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A bula, essa arte esquecida

Nuno Miguel Guedes, no Hoje Macau (14 Abril 2021)

«Com o decorrer dos anos este passatempo da minha juvenília foi sendo relegado à sua dimensão puramente utilitária e informativa. Mas eis que o destino ou o que quiserem fez questão de me devolver o prazer que pensava já haver perdido. Explico: por questões pessoais tive de me informar sobre um medicamento nesta altura bastante comum no tratamento de crianças e adultos com Perturbação de Hiperactividade com Défice de Atenção. Sabia, através de conversas com médicos e amigos, que era um medicamento com muitas contraindicações, pelo que deveria estar atento. Fui ler. De facto, a bula oferece várias páginas de perturbações associadas à má posologia ou a uma série de condições patológicas crónicas que são adversas a quem é receitado. Li então com a atenção necessária, mas, amigos, entre todos os conselhos e indicações havia um para o qual não estava preparado. Cito, no capítulo dedicado à sobredosagem: “Os sinais de sobredosagem podem incluir sentir-se doente, agitado, tremores (…) sensação de extrema felicidade (…)” Como? Desculpe? A “sensação de extrema felicidade” é prejudicial à saúde?
Quem escreveu esta bula, o doutor Schopenhauer? Eu próprio? Que maravilha, amigos. Apetecia-me falar com o espírito de Cioran, o Pirro dos pessimistas, só para ouvi-lo dizer que não pode haver excesso de uma coisa que nunca existirá.»

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Cadáver esquisito

João Paulo Cotrim, no Hoje Macau (14 Abril 2021)

«Estás sentado à mesa para acertar detalhes últimos de projecto que tem tudo a ver com torres e cavalos e bispos e peões em movimento desconcertante. Alguém que sabe abrir os segredos de certas substâncias, combinar levezas e amargores, o líquido e a luz, ou seja, um aprendiz de feiticeiro que também sacrifica à leitura resolve fazer a mais perigosa das jogadas: e se? O João [Brazão], sabendo do interesse de alguns autores pelas inesgotáveis matizes da cerveja e do que se esconde no gesto de beber em comunidade, desafia-os para um cruzamento. «Cadáver esquisito», receita surrealista para a criação ilimitada, será doravante também nome de bebida com muito para contar. Cada um dos seis rótulos do volume primeiro terá um conto, iluminado com a ironia do Nuno [Saraiva] e com design abrangente e delirante do Marko [Rosalline], que vai ao ponto de querer documentar o processo completo em busca essência da criação. Foi dos primeiros a surpreender-te com o lume da paixão e logo grande cicerone das tradições e dos sabores. Muito antes dos ventos da moda, o mano Luís [Afonso] fez da saudosa «Vemos, Ouvimos e Lemos» lugar de peregrinação, tal a diversidade de experiências que oferecia, rimando com os livros e o mais. Pertence-lhe a descrição do néctar, a servir em garrafa de 0,75 litros e logo adoptada pelo mestre cervejeiro: «um pouco turva, com tons de âmbar claro e uma espuma cremosa e persistente. Além de um sabor de estilo belga, com notas de especiarias e banana, aroma e amargor do lúpulo, num final seco». O embaixador Afonso [Cruz] transformou a artesanal beberagem em causa, literária e filosófica, dando-lhe mais sabor e profundidade. O explorador das estepes do pensamento, que palmilha por todos os meios existentes e por ele criados, Luís [Carmelo] usa a pequena garrafa como bordão e báculo. Outro que a manobra que nem bússola, também no afã de descobrir continentes, reacender vulcões ou matar a sede é o Valério [Romão]. Quando foste a Curitiba ao encontro do Paulo [José Miranda], entre o aeroporto e a sua casa tiveste curso acelerado com degustação e versos. Aliás, a estada tornou-se afinal viagem ao coração do universo, a que só se acede por estes degraus. O amargor nunca mais se reduziu a amarguras ou amargos de boca. O sexto conto coube-te a ti, que pouco mais sabes que beber. Cada um na sua garrafa e todos em livro, não podia ser outro o modo. A força da coincidência por a morte rainha desta partida, antes ainda de encontrado o nome. Pormenor para futuras conversas.»

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A personagem

Paulo José Miranda, no Hoje Macau (13 Abril 2021)

«O livro começa assim: «Deus não fez o mundo em dois dias, mas também não levou uma vida toda, costumava dizer Abib Justus, agora preso no trânsito, precisamente na esquina da Augusta com a Paulista, na direcção dos Jardins. Fala através do celular, quase aos gritos “O vinho ainda não chegou? E estão esperando o quê, que eu chegue aí para tratar disso? Vamos começar a servir o jantar em uma hora e você me telefona agora para dizer que estamos sem vinho, que ainda não foi entregue? Tenho de ser eu a fazer tudo? Vá na Domus e pegue os vinhos, que eu mesmo vou ligar para lá agora e digo ao Rodrigo quais são… Sim, depois pago… Eu digo isso a ele quando ligar, sim. E vá depressa! Ah, e vá a pé até lá… Depois apanhe um táxi pró restaurante, para evitar o trânsito da Itu… Não posso deixar o restaurante, ninguém faz nada do que deve ser feito!” A última frase já não foi para o empregado, mas para si mesmo. Abriu o Baobá há pouco mais de um ano e tem sido muito mais trabalho do que lucro. Mas está tudo caminhando dentro do previsto, menos as dores de cabeça pela gritante incompetência da mão de obra deste país.»

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Rita Taborda Duarte no podcast «Louco Como Eu»

Susana Moreira Marques conversa com Rita Taborda Duarte (11 Abril 2021)

Joyce Carol Oates disse uma vez que quando os escritores perguntam uns aos outros a que horas começam a escrever ou quanto tempo levam a almoçar estão realmente a querer saber: é ele tão louco como eu?

Escritores desvendam o seu processo criativo e confessam o que gostariam de perguntar a outros autores. Conversas de loucos que acreditam, contra tantas evidências, que passar horas e horas em redor de palavras é tão útil que pode mudar o mundo.

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Depois de grande

Valério Romão no Hoje Macau (8 Abril 2021)

«O meu Guilherme vai fazer dezoito anos em Setembro. Não fala. Não consegue abrir a porta de um armário para roubar um pacote de bolachas. Não sabe limpar o rabo depois de ir à casa de banho. Não consegue dizer se lhe dói alguma coisa ou onde lhe dói. Tende a meter tudo quanto é migalhinha à boca (uma condição chamada «pica»).
Nunca beijou uma rapariga (ou um rapaz). Não gosta de desenhar, de colorir, de fazer puzzles ou legos, de brincar com outras crianças (ou não sabe). Tudo quanto gosta de fazer é de ver desenhos animados na televisão ou no telemóvel. É surpreendentemente ágil a deambular nos seus vídeos preferidos do Youtube e nesse aspecto maneja um telemóvel com a desenvoltura expectável para um adolescente da sua idade.
No próximo ano ou no seguinte deixa de ir para a escola (que funciona, para um autista com as suas limitações, mais como um centro de terapia ocupacional do que qualquer outra coisa). Não sabemos bem o que fazer com ele depois disso. Ninguém sabe. Os apoios aos autistas vão sobretudo no sentido de recuperá-los para uma vida tão normal quanto possível na maioridade. O investimento social e público pára por aí. Percebe-se.»

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