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Um recomeço

Nuno Miguel Guedes, no Hoje Macau (21 Abril 2021)

«Sentado num canto estratégico, lugar ideal para o caçador do quotidiano, observo. E o que vejo é o que faz a diferença: há movimento, sorrisos debaixo das máscaras, olhos ardentes. Há conversas sobrepostas que chegam a sufocar a vozearia do mundo que é debitada pela televisão. Olhando esta gente, olhando-me a mim, lembro de forma pouco modesta um verso que escrevi e que tive a sorte de o ouvir cantado: “Cada fim é um recomeço”. Porque é de recomeço que se estão a construir estas primeiras horas de liberdade relativa.
É um dia de regresso e Deus sabe como eu gosto de regressos. Cada cliente deste pequeno café de bairro é um Ulisses do dia a dia, cansado de uma longa viagem por mapas desconhecidos e territórios inseguros. Aportam a este lugar com histórias fantásticas para contar e preparados para outras que ainda nem começaram. Percebo. Sou um deles, quero ser um deles. O meu telefone volta à vida com planos de trabalho, convites vários para toda a espécie de reencontros. O pastel de nata que devoro tem o sabor da madalena de Proust.»

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Vil e apagada tristeza

João Paulo Cotrim, no Hoje Macau (7 Abril 2021)

Santa Bárbara, Lisboa, segunda, 6 Abril

Lisboa – que nunca foi de se esplanar ou jardinar e perdeu aquela maneira de se viver cidade nas praças-catedrais que são os grandes cafés – está sentada no meio da rua a celebrar a Primavera do seu descontentamento. Os indicadores postos em gráficos e nas opiniões médicas que governam as nossas vidas de doentes por acontecer mandaram entreabrir. A impaciência empurrou portas, janelas e postigos, afinal forma de abrir no fechado. Dizem que seremos salvos pelo tamanho do intervalo, da interrupção do toque e da conspiração. O mundo parece disco riscado e o mais provável será o regresso à casa de partida que arrisca coincidir com a prisão. Exagero, claro, excepto para os mais velhos, que perderam as migalhas de autonomia e estão arrumadinhos em casas-forte de acrílico. E a da Gadanha anda em azáfama tamanha que arrisca esquecer-se de um ou outro que a chama em tonitruante silêncio deixando de comer. Queima esta coisificação dos nossos queridos velhos.
«Atentava naquele turvamento de palha-de-aço pousado em mãos ambas: curiosas formas têm as nuvens de arder. Tivera sucedido em papel desenhado e o aludido ganharia o desconchavo que as partículas em suspensão assumem quando se dá a ver o pensado. Naqueles espelhos enxertados em céu são sempre múltiplos os estratos, o roçagar das quase esferas expandindo-se em inquieta imperfeição, com rugas e refêgos a cambiarem de lugar, o ténue brincando com o sombrio. Atravessam as configurações das coisas como se fossem atalho. Brotam das paredes e acorrem a colhê-las com a palavra salitre. Se o azul perdura no lápis-lazúli, as nuvens reencarnam nas trufas: assim se deixam alcançar. Está em vias de extinção a arte que reivindicava a sua captura e domesticação, que parece sobreviver tão só na prerrogativa dos zangados. Vil e apagada tristeza, esta do bom tempo estar condenado a ser sem nuvens.»
Por causa do «Diário das Nuvens», tenho tido os dias contados. Com este acabado de passar pelos seus olhos, leitor, faz oitenta que começámos a brincadeira do toma lá nuvem, mete-lhe partículas dentro e vai estendê-las na rede a corar. Tal o cão com o seu invejável afinco atrás da causa, pus-me atrás das palavras. As leves soltam-se, as pesadas estrumam. Muitos destes poemas em prosa brotaram, pétala e espinho, copa e raiz, das tonalidades que cada palavrinha de nada pode conter. Atentemos na palavra coisa: parece nuvem de tanto lhe caber. O desgaste da oralidade, mas também as fendas que suscita, deram uma ajuda neste trabalho oficinal. Ficam por arrumar várias ferramentas como a repetição ou o neologismo metido a martelo. Tenho que lhes pintar a sombra na parede para que conheçam o sítio de repouso. Por falar em genética, a cidade e a casa cruzaram-se nas atenções. Certa canção diz que a casa é onde dói mais. Esta cidade dói-me no peito. Devia dizer como alguém próximo nos diz: não te metas na minha vida, não entres em mim. Já vai tarde. Outras criaturas suscitadas ficam por ora em sossego, por junto com mais obsessões de trazer por casa. A proximidade forçada não significará ossatura de domésticos frankensteins, colagem de avulsos. Valeu pontos também o ensaio, aquilo que se dá quando alguém pega no objecto procurado com energia e inteligência repetidamente treinadas, evita as investidas de cada um para lho roubar ou impedir progressão, e passa o risco. Em outra disciplina cumpre-se na tentativa de atirar projéctil de peso bem medido além da linha, o conjunto circunscrito à secção de uma circunferência por completar. Jamais pensei que a geometria, mais ou menos descritiva, se tornaria companheira. Passei a vida a traçar linhas de terra invariavelmente sujas, portanto dignas de punição.

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Delirium Tremens

João Paulo Cotrim, no Hoje Macau (31 Março 2021)

Horta Seca, Lisboa, sexta, 26 Março

Diz a velha sentada na borda na cama do hospital sem chegar com os pés ao chão, antena sem ligação à terra: são muitas as frases por que passa um homem. No exacto instante – eu morra já aqui na medicina legal fazendo haiku se não foi assim, pelas alminhas da minha mãe, que tinha pelo menos duas além da da mulher a dias de quem ela gostava bué, pela saúde dos meus filhos que nunca tive e por isso morreram saudáveis – passajou uma mudança de sexo que mal a ouviu logo se engasgou. Não havia intensivista nos arredores pelo que teve de ser o quebra-gelo a descalçar a bota. O voluntarismo não resolveu o problema dado a dita ser alta e de atacadores, ou seja, o tempo passou naquele fascinante manuseio entre cirurgia, fala de surdos e truques com cartas. Anunciava-se a desdita, alguém afina a navalha, ninguém afia a voz. O fado é um drone com baterias de longo alcance. Posto isto, que não nas redes, o sexo em vias de sintonizar identidades ia ficando roxo pascal, tipo vindo de sangue de boi a caminho do amarelo de nódoa negra pisada, não tenho presente o pantone. Era grave. Uma gravidade agravada pelo peso dos protagonistas e por não estar pronto o directo para o programa da tarde, perdeu-se a oportunidade, que rolou redonda em câmara lenta para sarjeta. Em câmara lenta era mais emocionante, em câmara lenta tudo se faz, em mais e melhor.
A velha pigarreava para aclarar a deixa, velha queixa, querida gueixa. Não te esqueças onde vais, um perigo em contexto hospitalar, onde se perde gente à toa. Alguém lhe daria a atenção devida, mas era de morte: os sucedidos não paravam de se suceder com sucessível sucesso. Fugiram protocolos de psiquiatria em debandada psiquiátrica.
Quem o diz em voz alta ou alta voz? No segundo piso, afirmou o tarado dos diálogos de séries de horário nobre e grande público, ou grande pobre em erário púbico. Não me fodas, a plateia não cresce por mais que a regues, respondeu o marado da ontologia. Isso é noutro serviço, insistiu o primeiro, o do segundo piso, em cena típica de parada e resposta, que, cá está, convém dar-se no rés-do-chão das novelas de cordel. Neste entretém, sem contar com os que arrefeciam já o mármore frio, faleceram para lá de muitos. O esquecido sexo que queria apenas meter a mudança de genitais deixava-se ir abaixo.
Entretanto e tão pouco, a velha, ainda e sempre ela, golfava ininterruptos ditados. Uma vida não vale nada, mas nada vale uma vida. Que pode uma mulher trespassada pelos balões de fala fazer? Que pode uma trespassada fazer com a mulher que fala pelos balões? Pode a haste do balão fazer de falo na fala? Quem tem balões para fazer a fala confessar uma mulher? Impasse. A imagem congelava sem apelo nem agravo, que os corredores são longos e o conselho de ética hesitante, em ética hesita-se mais e melhor: sacudida como a folha de cantos redondos do velho raio-xis a despir o esqueleto ou pendurada tal o ícone búlgaro da virgem tão mexicana que os chineses não conseguem refazer em plástico. Não me desminta, interveio logo o imagologista de seta de rato na mão, por causa dos pontos de interrogação no relatório.

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Prova de vida (bis)

João Paulo Cotrim, no Hoje Macau (24 Março 2021)

«É raro ver a mão por si só. Dançarina, agita-se à frente do peito, prolongamento dos olhos, alargando a área de influência da voz. Ferramenta, fecha-se em força, desmultiplica-se em função, alicate, bisturi, seringa, chave, bandeira. Instrumento, vai a cada canto do palco e do sopro e das cordas. E assim com os corpos, aquele de que faz parte ou alheios, para tocar e, portanto, aumentar. Ou repousa por sobre partes outras, recolhida às axilas, à timidez e conforto dos bolsos. Tem que se apanhar distraída, cansada, como que desarticulada, de um lado veias, do outro linhas. Vejo-as a sacudir o pó do álbum e deixo-me vaguear até ao tédio fatal.

«O meu pecado era não ter dezoito anos. A norma não permitia o desejo. E o senhor de azul não parava de o repetir. Que não, imensas eram as desculpas e os lamentos para tudo ser resumido e concluído num «não». Redondo. Não podia entrar no bloco de granito branco. Que não e pronto. Na Biblioteca Nacional só podia entrar depois de ter aqueles anos cumpridos. Foram tiros na minha curiosidade. Recolhi à timidez e desci os degraus, entre anjos de saber. Há-de haver algures um nome para os «guarda-lombadas». Guarda-livros é para quem neles guarda números. Anjo-da-guarda também não se aplica, que esses evitam acidentes. Tendo os livros alma, serão as bibliotecas céu ou inferno? No Campo Grande há um enorme purgatório cheio de almas penadas.
Durante oito ou nove séculos, artistas e santos, campónios e burgueses comeram a poeira daqueles caminhos, pintaram aqueles ícones, construíram e reconstruiram aquelas paredes, fecharam-se sob a ocupação otomana, abriram-se aos ventos da Renascença Nacional Búlgara, padeceram as proibições comunistas, acolheram o seu fim.
Durante oito ou nove séculos, ressoaram os sinos pela floresta que esconde o Mosteiro de Rila, e sem por isso afectarem o silêncio prenhe dos santuários. Cerrada a porta principal, o mosteiro torna-se castelo inexpugnável. Mas a entrada fundamental não se fecha. Os peregrinos acedem aos manuscritos e anotam-nos. É cedida passagem ao povo que aí se perde nas hagiografias pintadas do fundador, o eremita S. João. Anjos, somos todos anjos.
Qualquer um pode tocar as iluminuras. Qualquer um pode trazer pó das lombadas nos dedos. Qualquer um pode abastecer-se de metáforas para o caminho. Ou ler, livros d’alma que por lá não vi outros.»
Alma minha, revista Ler »

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Prova de vida

João Paulo Cotrim, no Hoje Macau (17 Março 2021)

Na discussão ininterrupta entre o peso e a leveza, a cadeira parece-me um dos mais notáveis argumentos. Assim como o bater de asas do colibri, só o debate nos sustenta. Dir-me-ão que a posição de lótus fará bem a ligação entre terra e céu, mas não encontro nisso construção. Não existimos sem extensões do corpo e a cadeira dá-nos um chão que ir permite ir longe mantendo raízes. O automóvel foi construído para definirmos bem sentados a paisagem. A casa é uma garagem de cadeiras. Sento-me na primeira fila para ver o espectáculo imersivo da meia idade. Sem querer, elefante, salto de nenúfar em nenúfar.

«As ruas que descem são perigosas. Nada de mais, apenas inclinação. Os montes subidos também continham a sua dose de risco, cenário exacto para o Castelo. Sustenha-se a respiração. Uma navalha esculpia na terra como uma tatuagem aquele exemplo de clássica arquitectura militar. A conquista havia tinha que se rasgar com percursos unidos pelas armas que se espetadas na terra. Contavam apenas as que ficavam hirtas e vibrantes. Grande aventura, ter uma navalha na mão no meio dos montes para a atirar com força e gritos. Os gritos são indispensáveis. Nem tínhamos que jogar bruto, mas aí aliviava bastante. Contra um árbitro, que segurava a cabeça do primeiro e por isso se chamava mãe, um grupo enfileirava-se de costas dobradas, cabeça debaixo das pernas do da frente, enquanto o outro grupo saltava de joelhos nas costas. Quem não aguentasse, perdia. Quem não aguenta, perde. Não é diferente fora das histórias: gritar ajuda. Doía mais o círculo dos calduços por causa do silêncio imposto. No meio de uma apertada roda de estátuas proibidas de mostrar os dentes alguém se mexia como doido. Se parasse oferecia a nuca à fortíssima palmada anónima. Se vislumbrasse o autor, caía ele no buraco negro. Não era fácil trocar de abismo.»
Desportos radicais, A história devida, programa Antena 1

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Ceci n’est pas une cronique

João Paulo Cotrim, no Hoje Macau (3 Março 2021)

«É a vida que nos mata. Andava às voltas há dias com conto para o qual mandei chamar a Velha, que trataria de fazer o que bem faz. Teria, pelo menos para mim, o rosto que Posada deu a Catrina, entre nuvens de pó, de talco, de terra batida ou outros activadores de memória. Chapéu de largo espectro, continente de ponta a ponta, sobre cabelos há muito esquecidos até do branco mas enlaçados, acolhendo plumas e rendas, luxúrias vegetais e enigmas do aprazimento, abrigando o tremendo sorriso. Um jogo de contornos a armadilhar com sombras e ocos a luz. Natureza morta escavada nos ocos da tinta, recordação do peso no papel. [Nota a desenvolver, dizem os camones que na natureza aprisionada pelas telas há ainda vida, «still life».]
Estava armadilhado a pensar no óbvio com que a cena se me apresentava, mesmo a preto e branco, quando chegou a estapafúrdia diva Astrid Hadad, coberta pelas cores mais populares, no seu álbum extraordinário «Vivir Muriendo», a cantar a plenas vozes Fernando Rivera Calderón [https://youtu.be/c31Euk7dQpI]: «Al verla cerré mis ojitos/ Y tieso yo me quede/ Desnuda y un poco uraña/ Dejo a un lado su guadaña/ Se metió conmigo a la cama y yo solo pude asentir/ Y entonces que llega la vida/ Y me descubre en la movida y se siente tan herida que yo me quise morir/ Y es que estaba tan despechada, tan furiosa y confundida/ La muerte ni me hizo nada/ A mi me mato la vida/ Y es que estaba tan despechada/ Tan furiosa y confundida/ La muerte ni me hizo nada, a mi me mato la vida». Vá lá um desgraçado acabar na cama a dança com esqueletos, esse querido mínimo denominador comum, a ruína que fica da carne que passou, a memória que certas tradições encheram de alma! A vida apanha-nos em pleno comércio de seduções e mata-o, atirando-a para os braços da Outra. Ironias do fadestino. Copos ao alto.
Na perspectiva cubista, para mim a de Juan Gris, soma-se recorte de jornal, caixas de medicamentos, chamadas insistentes, envelopes por abrir e umas linhas que são cordas e, de novo, afiadas e firmes de espetar. Toca o telefone. Não costumo, mas a este companheiro atenderei sempre. Diz que a morte do Ferlinghetti lhe interrompeu a audição do «Le Grand Macabre», do Ligetti, e não distingui a causa da aflição, se o apagamento do velho sábio, se a paragem forçada. «The world is a beautiful place/ to be born into/ if you don’t mind happiness/not always being /so very much fun/ if you don’t mind a touch of hell/ now and then/ just when everything is fine/ because even in heaven/ they don’t sing/ all the time// The world is a beautiful place/ to be born into/ if you don’t mind some people dying/ all the time/ or maybe only starving/ some of the time/ which isn’t half so bad/ if it isn’t you.» Só que a morte dos outros, portanto a vida, também nos mata.»

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Está quase, já passou

Valério Romão no Hoje Macau (26 Fevereiro 2021)

«Quando vivia em França, com os meus pais, uma boa parte da infância, numa cidade do interior ladeando uma cordilheira de vulcões dormentes – Clermont-Ferrand – onde o clima era particularmente inclemente – Invernos nevosos e Verões infernais, a Primavera, muitas vezes tardando em aparecer até despontar, tímida, nos últimos dias de Março, como se tivesse prurido em chegar, era a única altura da vida da cidade em que o corpo parecia estar em sintonia com o ambiente.
Eu estava sempre doente no Inverno, amiúde no Outono, e calhavam-me sempre pelo menos duas sessões de amigdalite no Verão. Na Primavera descobria o que era ser como os outros miúdos – sempre muito mais robustos do que eu. Na Primavera éramos todos imortais. Na Primavera o meu pai atrevia-se a tirar-me da segurança de casa aos fins-de-semana para fazermos piqueniques à beira-rio com a trupe de emigrantes com que partilhávamos pão e histórias da terrinha. Íamos pescar trutas – de que eu fingia gostar à mesa mais do que na verdade gostava –, ver a procissão dos bichos a caminho das múltiplas peripécias da vida (isto é um gaio, filho, isto é uma lebre, vês como têm as pernas muito mais longas do que as dos coelhos, isto é…), e no caminho de regresso, o meu pai ia apontando – para desespero da minha mãe, que insistia em que ele olhasse antes para a estrada – onde tinha trabalhado, onde tinha comido a melhor perdiz estufada, onde tinha bebido uns copos a mais. Era a topografia do adulto de meia-idade antes da chegada da mulher e filho, a segunda adolescência numa terra em que uma estranha liberdade eclode do anonimato.
Tenho poucas lembranças da minha infância – felizmente. Essas poucas lembranças são bastante desproporcionais em relação aos sítios de onde elas vêm e ao tempo que neles passei. Estava quase sempre na cidade, enfiado em casa ou na sala de aula. Lembro-me vagamente da casa em França, uns pormenores difusos, o sítio do fogão, o padrão do papel de parede, a cor com que pintaram as janelas. Da escola lembro-me ainda menos; umas rampas que tínhamos de descer ou subir para entrar nas salas de aulas, um pátio enorme onde as crianças mais façanhudas se entretinham a humilhar as crianças mais reservadas, duas freiras extremamente meigas que eram o meu porto de abrigo quando as coisas não faziam sentido ou o almoço era fígado guisado.»

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Cá dentro do lá fora (bis)

João Paulo Cotrim, no Hoje Macau (24 Fevereiro 2021)

«Ainda é cedo para alinhar perdas e ganhos, se os houve, no livro-desrazão desta pandemia. Na roubalheira generalizada de vidas e do viver roubou-me a possibilidade de acompanhar em documentário o fechar das portas da Campos Trindade. Conservarei muitas imagens em lugares e modos que ainda desconheço, no velho sentido de “nascer com”, o que ali se deu vezes sem conta no acanhado dos últimos anos. Ia chamar-se «44, Rua do Alecrim», celebrando a redondez dos quarenta e quatros anos de porta aberta. Apesar de ter sido por um triz, o filme não acontecerá, mas ninguém nos tira, a mim, ao Nuno [Miguel Guedes] e ao protagonista, Bernardo [Trindade], as longuíssimas conversas de namoro em torno do amor, que é como quem diz amizade. E dos fios ténues e consistentes com que se entretecem as famílias. Na apresentação que fizemos para convocar parcerias e boas-vontades, escrevíamos: «a pergunta que nos interessa, entre tantas possíveis, é esta: os livros são seres vivos? Existe quem ache que sim e faça disso prática e louvor. A história que se quer contar é um desses exemplos, onde o valor é mais importante do que o custo; onde o destino é de facto determinado mas por uma única lógica, avessa a mercantilismo ou ignorância. E essa lógica é a do coração misturado com o saber, combinação única e rara. Mas praticada. E com provas em papel e palavra.» Estou certo que arranjaremos maneira mais portátil de voltar ao assunto. É que «a história que queremos contar fala de vida. Do que fomos, do que somos e com sorte do que poderemos ser. E é por isso que a resposta à pergunta colocada é fácil: sim, os livros são seres vivos.»
Voltámos pela última vez às salas vazias, agora enormes. Um destes dias a fachada completa ̶ nome, porta, montra, painel de azulejos ̶ será abrigada, com ironia, por mãos amantes de coleccionadores. Voltámos e forçámos a alegria de mudar de pele, que «o lugar dos livros não se esvai enquanto tiver por mapa um livreiro»:

uma livraria tem por objecto o roubo dos raios e relâmpagos
a sala nua que nos despia não alcança nem sombra nem brilho

as palavras ecoaram dessabendo onde pousar no que iam dizendo
saudades de quando no desarrumo os sentidos se desmultiplicavam

os amadores que costumavam reconhecer páginas e lugares
como em casa ou no corpo
desconheciam agora onde pôr as mãos
sem arriscar largar os olhares uns dos outros
derivavam à tona das areias movediças
a tornar quadrados os metros
medos

daqui só se sai vivo reaprendendo a deslizar sobre as páginas
lágrimas»

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Um sol inesperado

Valério Romão, no Hoje Macau (19 Fevereiro 2021)

«Felizmente, temos conseguido controlar (com muitos sacrifícios a vários níveis) a taxa de mortalidade – com algumas excepções muito pouco felizes, como foi o caso deste Janeiro. Mas subsiste a sensação de que a morte – apesar de todas as medidas, apesar das benfazejas vacinas – está à espreita, à espera de um descuido, de uma distracção de principiante, do momento em que ousamos vir à tona reclamar o quinhão de oxigénio a que estávamos habituados. De um ponto de vista objectivo – eu de fora, com os óculos da ciência disponível postos, a olhar para mim próprio – sei que não faço parte de um grupo de risco acrescido. Em princípio, se o bicho resolver fazer de mim turismo, sobreviverei. Mas se em Março do ano passado, quando o confinamento era sinónimo de incerteza e de pavor, eu conhecia apenas duas pessoas que tinham adoecido com o vírus – e que nem sequer moravam em Portugal (olá Ana, olá Carlos, sintam-se bem-vindos a este texto) – e que dele recuperam sem qualquer mazela subsequente, neste momento conheço muito mais gente que adoeceu – e recuperou – e também gente que morreu.
A morte em jeito de estatística no telejornal da noite, vociferada pelo apresentador de serviço como se de um anúncio bíblico se tratasse, não me tira propriamente o sono; há muito tempo que a minha relação com a televisão e os seus mecanismos de predação afectiva é praticamente inexistente. Evito-a como quem se escusa à companhia de uma pessoa desonesta. Mas não há como evitar o pesar por aqueles de quem sabíamos os nomes, ou aqueles que são os pais, os tios ou os avós das pessoas da nossa congregação de vivências. São esses que dão à cara à estatística anónima que alimenta os noticiários. Lá fora cheira à morte.
E, de repente, e por mais que se insista em abandonar a vida à soleira da porta enquanto ela não resolver se portar bem, a vida, como as ervas que rebentam na fenda de uma rocha num assomo de tenacidade, a vida acontece. Sem avisos, sem reservas, sem máscaras: ela segue-nos para onde quer que vamos.»

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Da vergonha

Valério Romão, no Hoje Macau (6 Junho 2021)

«Em Março do ano passado escrevia aqui nesta coluna que estes momentos de crise acabam por ser uma espécie de janela e de espelho. Uma janela no sentido em que cada um de nós assiste ao outro revelando-se – como o conhecíamos ou como nunca imaginamos que seria – e assiste – mais ou menos satisfeito com o resultado – à sua própria revelação. Uma coisa é a ética em conversa de café; outra, muito diferente, é como cada um de nós reage numa situação excepcional. Somos capazes dos mais desobrigados sacrifícios e do mais abjecto egoísmo. A história é uma sucessão de homens que, perante a adversidade, cresceram ou mirraram.
O que tem vindo a lume, porém, são maioritariamente histórias do pequeno abuso de poder tão costumeiro em Portugal. Autarcas cujo ego não cabe no reflexo do espelho, convencidos que estão isentos do cumprimento das regras do jogo democrático; pequenos dirigentes intermédios de organismos públicos habituados a levar resmas de papel do escritório para casa a colocarem na lista dos vacinados prioritários mulher, filhos, sogra e periquito; a malta rés-do-chão da hierarquia logística cujos dedos pegajosos alimentam diariamente a estatística do desperdício nos serviços públicos a desviarem aquilo que podem, vacinas incluídas. Portugal em dois vocábulos: desenrascanço e jeitinho.»

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