«Há lagos com cisnes e choupos à volta que são mulheres, mas só ela abandonou o filho num presépio natural. Lagos que levantam reflexos para esquecer a escuridão, lagos que inventam mapas volúveis para aprender a falar. De cada vez que lá passava, a mulher transformava-se numa ramagem e, vista de cima, caberia ao longo pescoço do cisne pensar o significado dessa ramagem. Um menino igual a Jesus sai do saco e faz-se gente. Ele sabe que as grandes mansardas foram concebidas para os sótãos que se perfilam no topo das cidades. É num desses torreões que a mulher vive, já que o seu ofício passa por esquecer a terra e as suas armadorias desconhecidas. Só ela sabe quantas são as escritas, as quilhas e também os mastros enterrados no fundo da duração. Ela ama Botticelli por causa dos cabelos de Vénus. Ama com a língua todas as outras mulheres. A luz é o defeito da grande noite que precede o nascimento, mesmo o de Vénus por ter escolhido a concha para desafiar a obscuridade. Jesus é um bebé abandonado que cisma com hortências a falar em voz baixa. O bebé, depois rapaz e depois homem vê deus nas duas hortências que se debatem com aquele verde das pequenas vagas. Na realidade vê deus no seu próprio bosque, um deus selvagem que lhe levanta a cegueira na direcção de algumas das madressilvas menos acessíveis à mão. Nos dias em que não regressa a casa, a mulher entrega-se a imersões profundas e prolongadas com breves aparições à superfície para respirar. E arrepende-se fortemente. Transforma-se então numa mariposa como se o movimento ondulatório dos golfinhos fosse o seu. Por vezes, quando coloca o pé num dos extremos desse percurso, grita. Um grito que dá a ouvir o mais claro batimento do mundo.»
«Fujo dos grandes temas e proponho para este capítulo a existência das canções. Não me parece que exagero quando digo – e digo muitas vezes, acreditem – que se trata da mais perfeita forma de arte popular. Para começar porque se imiscui na nossa vida a ponto de por vezes confundirmos as duas. Todos passámos por isso, amigos: aquele “tema” que soava quando conhecemos o amor da nossa vida, aquela voz e palavras quando perdemos o amor da nossa vida. Tenho uma teoria que não pretendo tornar universal, mas que certamente tem a sua prova viva neste vosso criado: a nossa vida é um musical de que nós somos protagonistas involuntários. Numa das mais extraordinárias canções da década de 90 do século XX – Songs Of Love, dos The Divine Comedy e escrita pelo insuperável Neil Hannon – conta-se a história de um fazedor de canções que da sua água-furtada vê passar casais felizes proclamando o seu amor à custa das canções que ele, pobre solitário, constrói. É uma canção de um doce cinismo mas nem por isso deixa de ser verdade. É graças a esses trabalhadores-artistas que tantas vezes vamos balizando os nossos sentimentos sem termos a preocupação de lhes agradecer. Depois há isto: as canções vivem tão dentro de nós que as podemos usar em qualquer ocasião: no carro, na rua, no chuveiro. E têm a capacidade de despertarem emoções mesmo quando estamos distraídos. Conto: há uns dias resolvi ver um filme preguiçoso, ideal para uma matiné caseira preguiçosa. Um filme rasteiro, de “acção” (chama-se The Equalizer, já que não perguntam) e perfeito para manter neurónios e coração em sossego. Assim foi: até que nos minutos finais do filme surge uma banda sonora que a princípio não reconheci por se tratar de uma versão; mas os versos “distant colors, different shade/over with mistake were made/ I took the blame” apanharam-me como um soco no estômago: tratava-se de New Dawn Fades, dos Joy Division, banda com que vivi e vivo e coloco – com alguns discos de Leonard Cohen, Amália e Sinatra – sob o rótulo “manter afastado do alcance das crianças”. E eis o que aconteceu, amigos: subitamente as lágrimas caíram. Não por causa de nostalgias de juventude, que não as tenho – mas pelo imenso poder da canção, capaz de me virar do avesso num ápice.»
«À primeira vista, poderíamos ser levados a pensar num desses novos livros de erótica de segunda categoria, ainda que tenha sido publicado antes, mas a verdade é que o uso da linguagem em relação aos actos sexuais vão além da descrição. Como ela mesma disse numa entrevista à New Yorker: «Tentei usar a linguagem de modo a que o que acontecesse entre Rebecca e Oliver mostrasse a alma, mais do que o corpo ou os corpos.» E na verdade não me parece que ela esteja longe disso. Leia-se uma extensa passagem onde isso acontece: «O amor transformava-se numa enorme e contínua negação. Um enorme NÃO a envolver-lhes os corpos, os beijos, os gestos, os sons… Tudo era permitido. Rebecca permitia tudo, excepto acabar. Tudo era permitido excepto o que ele queria. Porque Oliver não sabia o que queria. E quem não sabe o que quer, não pode ter em suas mãos o poder de decisão. Depois os seios, breves, macios, como se a idade dela não fosse vinte e cinco anos, mas de uma ninfa, de uma musa à entrada da puberdade. As ancas com duas ligeiras curvas, duas vírgulas onde o seu corpo era uma pequena oração intercalada. A pele de seda das pernas, o interior das pernas, o interior do mundo, do início do mundo. E o sexo tão estreito, como uma vida humana no universo, que o medo de dor, em ambos, aflorou no rosto deles, nos olhos perdidos em que se viam, em que tentavam encontrar-se. O rabo dela, só por si era um poema, um hakai. Não teve como o engenheiro não se afogar de amor. E quantas vezes não encostava o seu rosto largo ao rosto estreito dela, suavemente, como um beija-flor junto a um girassol, apenas com a intenção de se salvar! E ela nunca gritava, não fazia sons exagerados, gemia como um passarinho assustado. As mãos dele desenhavam continuamente o corpo dela, de cima para baixo, de baixo para cima. Nascia dentro dele uma vontade de morrer nela.» Quando mais tarde, Rebecca termina a relação com Oliver, que para ela sempre fora casual, ou como ela dizia «casual +», passamos a ver a vida do engenheiro. O tormento da falta que um corpo pode fazer na alma. Leia-se: «Os dias, as noites passavam arrastando cada vez mais o engenheiro para as memórias do corpo de Rebecca, do rosto de Rebecca. Da arte ímpar de Rebecca, na destruição de um corpo, na amplificação de um corpo. A luz, por detrás da cobertura cinzenta do céu, humedecia a cidade de Seattle. O engenheiro olhava a rua, esperava que as regras deixassem de existir e, de repente, fosse possível ver Rebecca lá em baixo, acenando e sorrindo. E as palavras trocadas, os gestos infligidos, a memória a fazer o seu trabalho de demolição de todas as paredes que ainda sustentavam o edifício da vontade do engenheiro. Revivia obsessivamente as últimas palavras de Rebecca, explicando a razão de acabar “não é nada pessoal, só não gosto de ti”. E, na verdade, gostar ou não gostar de alguém não tem nada de pessoal. É à revelia da nossa vontade. E não precisamos de enfatizar esse gostar. Por gostar podemos dizer simpatizar. Rebecca não simpatizava com Oliver, mas excitava-a a situação e o corpo dele.» O que Jane Edwards nos mostra exemplarmente é que não sabemos como é que de repente no tronamos mais vulneráveis ao toque do outro, às palavras do outro, do que poderíamos imaginar. Ou como Edwards escreve: «De repente, sentimos como o humano é frágil, só, vulnerável como um vaso de porcelana da dinastia Ming. A vulnerabilidade abre as asas e passa a rondar-nos como abutres voando sobre a nossa carne, como se já estivesse petrificada. Oliver sempre se sentiu assim nas mãos e no corpo de Rebecca, mas agora sentia-se também assim em todas as horas do dia, como um cadáver que respira.»»
«Quando a medicina capitula, consciente dos seus limites tecnológicos e éticos (sim, há uma ética em comunicar o fim, uma ética sobre a qual se funda, aliás, todo o edifício do que deve ser o comportamento adequado de um médico) entra então sorrateiramente a chamada «terapia alternativa». Normalmente, não promete a cura. Regra geral, as terapias alternativas são astutas em relação ao que oferecem (até porque a única coisa que têm, de facto, para oferecer, está do lado do paciente e reside na capacidade que este tem de ser sugestionado). Não podem oferecer uma cura, pelo menos ao modo da medicina, porque não a têm. Pelo que têm de percorrer caminhos tão alternativos como o adjectivo que as qualifica. Na maior parte das vezes, dizem-se preventivas: nesse aspecto são uma espécie de «medicina» no sentido grego da palavra: uma forma de vida cujo objectivo fundamental é preservar a saúde e impedir a doença. Mas quem muitas vezes lá chega já está para lá desse pináculo. Precisa de soluções. Não podendo prometer curar o cancro (e, ainda assim, alguns têm o descaramento moral de o fazer, sendo essa forma de exploração da fragilidade alheia um dos rostos mais asquerosos da ganância humana) advogam toda uma panóplia de mezinhas para «tornar a vida mais confortável», «ajudar com os efeitos secundários», «lidar com a dor» e, com alguma esperança (quase sempre albardada no lombo do paciente que «tem de ter fé no poder se curar!», recaindo sobre este o motivo do sucesso ou insucesso da terapia), «prolongar a vida» ou mesmo «ousar o milagre», coisa que dizem quase em surdina, acendendo assim uma luzinha na consciência do desesperado sem se comprometerem em demasia.»
«A palavra “perdição” é ambígua por natureza. Tanto se refere a uma pessoa ou coisa que desperta uma paixão irresistível por outrem como se refere a vício e até a condenação eterna. Por outro lado, designa ainda a figura da errância (uma pessoa perde-se, um pensamento perde-se, um mar perde-se, etc.). A palavra “perdição” ensina de facto a andar em muitas direcções. Por vezes ensina mesmo a voar. E foi a voar muitas vezes sobre a Holanda que revisitei o abstracionismo geométrico de Piet Mondrian e as suas teosofias coloridas. Os campos, desenhados por polders de cromatismo sempre diferenciado e recortados por moinhos e canais, ilustram com concreta nitidez aquilo que é o neoplasticismo assim como o rasgo dos artistas que, a par de Mondrian, souberam cativar esta arte das raras proporções, casos de Theo Van Doesburg, Vilmos Huszar, Gerrit Rietveld, Georges Vantongerloo ou de Jan Wils. A paisagem é, de facto, uma enciclopédia de grande limpidez – que alimenta a errância, o vício e a própria paixão – e que sabe transformar o que parece abstracto em tangível, quase palpável. Foi então que percebi que a minha Holanda é uma ilha. Incorporei-a, tal como a floresta incorpora a sua água, muito antes de ter conhecido o país com o mesmo nome. A minha Holanda é um conceito para a vida, um segundo perfil ou mesmo um contorno que me acompanha. Tudo começou no meu livro de geografia na pré-adolescência e, mais tarde, quando os aviões me levaram a sobrevoar (em ponte aérea de vários anos) o pequeno país onde haveria de viver durante uma década. O acaso e o fascínio atraem o nomadismo interior (a errância) e sabem convertê-lo em sedentarismo. »
«Barnes enfatiza a questão do tempo e não do espaço na definição de carta e, de certo modo, baralha-nos as contas. Pois, como escrevi atrás, estamos habituados a entender carta como um mecanismo de encurtar distâncias ou de aproximar «distantes». Ou seja, como uma forma de anular ou enfraquecer o espaço. Assim, e até pelo título do livro de Alice Barnes, «O Espaço Desarmado», ficamos perplexos com esta enfatização do tempo e não do espaço no mecanismo da carta. Veja-se como Alice Barnes nos mostra o tempo como característica fundante e fundamental do mecanismo da carta: «O tempo que as palavras que se enviam têm: 1) a sua durabilidade, pois ficam ali guardadas para serem relidas continuamente por quem a recebe, por vezes até ao desespero, até à exasperação; 2) a sua ponderação, pois quem a escreve tem tempo de ponderar nas palavras que vai inscrever no papel. Uma carta pode ser o relato daquilo que está a acontecer longe daquele a quem a carta é enviada. Pode e é, a maioria das vezes. De facto, a carta dá notícia do longínquo, pretende encurtar a distância que separa quem escreve de quem lê, daquele que está no centro dos acontecimentos daquele que está longe deles. A carta desarma o espaço. Como? Com tempo.»»
Mais sóbrio em termos formais é o primeiro livro de Ana Freitas Reis, o qual obedece a uma distribuição rigorosa dos poemas que leva a pensar nesta obra como num longo poema em gestação. A palavra Cordão (Abysmo, Março de 2021) do título desperta, desde logo, inúmeras imagens, sendo a mais intensa aquela que acaba por advir da epígrafe final pedida de empréstimo a Herberto Helder: «cordão de sangue à volta do pescoço». Tratar-se-á, então, de um cordão umbilical, algo que, de resto, é sugerido no poema inicial que encena um parto, repercutido posteriormente nos pequenos poemas distribuídos por páginas ímpares através de um complexo lexical assaz sugestivo desse «rebento milagre» inaugural: coração, sangue, sopro, útero, pulmões, raiz. Não andaremos longe da verdade se situarmos esta poesia no campo de uma representação do corpo feminino e da mais essencial das suas funções, albergar a geração de um ser. Nisso é possível estabelecer um paralelismo com a própria natureza do poema, hospedeiro de uma entidade e de uma identidade que resulta da relação apaixonada entre quem escreve e quem lê. Mas nesse caso estaríamos já numa dimensão metafísica que não me parece ser a mais adequada à singularidade deste cordão, o qual me chega nitidamente enquanto elo ao «assombro de estar vivo» (p. 11). O que ressalta do umbigo é a ligação a uma anterioridade que em cada ser perpetua o mistério da vida. Espantosa é a forma como esse mistério acaba celebrado nestes poemas publicados num tempo obnubilado pela ameaça persistente da morte, a qual, não tendo sido omitida, serve para lembrar que «Ainda tens coisas acesas no teu corpo» (p. 58). Penso pois neste livro como na gestação de um poema, e penso no poema como na gestação de um ser. Poesia indelevelmente ligada ao corpo, às possibilidades de representação do corpo, por um cordão que vai sendo desatado de verso a verso através de uma sensibilidade rítmica notável que aborda a respiração como uma doação. O recurso insistente a anáforas pontua o movimento sincopado de um coração, na demanda de uma musicalidade que reverbera uma meticulosa selecção verbal. Não faltam sequer alusões mitológicas (o barro que se molda, Adão e Eva) ou ao paganismo organizado em torno dos ciclos da natureza (referências ao correr dos meses, à Primavera enquanto momento de renovação). O Verão é a estação privilegiada desta poesia solar, a qual se desvia da melancolia repisada e da soturnidade elegíaca mais corriqueira optando pelo fulgor das chuvas que fertilizam a terra enquanto «possibilidade na alegria» (p. 25). Há neste Cordão uma reaproximação do homem à natureza que supera a ruptura operada por um racionalismo castrador e cristalizador, o mesmo que nos usurpou toda a possibilidade de espanto e de mistério, toda a hipótese de milagre. Saúde-se a coragem de num livro de poesia fascinado com a vida, neste início de século tão dado à morte:
MINTO SOBRE O ESTATUTO CONTEMPORÂNEO
todos somos, finalmente, aspectos vagabundos da naturezaMaria Gabriela Llansol Continuamos a procurar o espanto nas montanhas, insistimos nos cumes altos, miradouros frívolos ao serviço dos registos. Saio para sentir o odor lunar, procuro sinais de nascença pelo solo.
Não temo o chão da terra.
É noite ainda. Caem flechas por entre os ramos secos de um sobreiro. Trincamos os espinhos da navalha. As cabeças movem-se em direcção ao centro da fornalha.
Porque sim, Pela indolência da seiva que sabe de uma revolução nocturna. Encarno o perfume desgraçado desse lírio silvestre quando afinal repouso nos seios da natureza.
Fica de dia. Uma chuva opulenta inunda o nosso quarto, certos beijos prolongam o voo, sem temer a existência.
Hoje só conheço a terra, a única que não esquece a persistência e a possibilidade na alegria.
«Casa do Alentejo, Lisboa, sábado, 8 Maio Lisboa não deu pelo novel festival literário 5 L (de língua, literatura, livros, livrarias, leitura). A cidade ansiava por regressar a si, portanto a espreguiçar-se ao Sol, explodindo em milhentos regressos, peças, concertos, gritos e assim. Mas não aconteceu comunicação e a que existia era de uma dolorosa infantilidade («Ler é fixe», com a mãozinha armada em roqueanrole, a sério?). Alinhámos por razões de amizade e outras estratégicas, contribuindo com Pessoa em cabo-verdiano para deitar a língua de fora ao Dia da Língua; com o nonsense do mano Luis [Manuel Gaspar] para celebrar aquela ideia de cidade que se esvai entre os dedos, como as ruínas da Solmar; com os muitos recomeços que a Ana [Freitas Reis] injecta no sangue dos seus versos. Não consegui deixar de me sentir estrangeiro, ainda que na mesa das funções. Os gestos de encontro saem-nos desajeitados e hesitantes, não nos foi permitida ainda a festa que deve acontecer em cada arremesso, tudo me surgiu deslassado apesar do esforço e alegria dos autores e dos apresentadores, a Inês [Fonseca Santos] e o João [Soares], e até o vírus deu ar de graça ao projectar-se na Linha de Sombra impedindo a Odi Marítimu de levantar âncora.
Lisboa, terça, 11 Maio O Sporting ganhou. Não foi apenas o futebol, o futsal, o hóquei em patins, o ténis de mesa: venceu as probabilidades, o dinheiro, a má vontade, a descrença, a batota, o anti-jogo, a arrogância, a piadola, o mau perder, as faltas e as faltas de jeito, os velhos do Restelo e de Alvalade. Contra tudo e contra todos, por saber fazer com inteligência e coração, em cada um dos que vestem a camisola, treinador que pensa e sorri, capitão que corta e marca com peito e alegria, no guarda-redes que defende como quem ataca, no sangue e fresco do meio campo, centro da inteligência e do coração, por saber correr e sofrer nas laterais, por se transcender enquanto equipa dentro e fora de campo, por cruzar inteligência e coração. Por ser o clube de Peyroteo e Yazalde, que jogavam com y (na foto da infância), além dos tantos queridos, aparecidos e desaparecidos. E por ser redonda a bola.»
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