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Os homens que abrem caminho

Valério Romão, no Hoje Macau (14 Maio 2021)

«Quando o meu pai morreu, eu tinha acabado de experimentar a adolescência na sua componente de excessos irresponsáveis. Era quarta-feira de cinzas e eu estava de ressaca. Tinha saído na sexta, no sábado, na segunda e na terça e em cada um desses dias eu tinha bebido mais do aquilo a que estava habituado. Pela primeira vez na minha vida, tinha contacto, ainda que muito difusamente, com o conceito de ressaca. Pela primeira vez na minha vida, percebia o significado de «dia seguinte».
O meu pai morreu em casa, nos meus braços. Demasiado repentino, demasiado cedo. Tínhamos finalmente descoberto o filão de uma linguagem comum. Já não passávamos um pelo outro no corredor como dois estranhos que se cruzam numa estação de comboios. Vê-lo partir assim, antes de ser possível recuperar as centenas de abraços que não demos e todas as ideias que não trocamos, arrancou um bom pedaço de mim. O edifício não cai apenas porque se vota parte dele ao abandono e se cola o restante com cuspo.
Há uns dias morreu-me um amigo, o Cândido. Tive a sorte de conhecer e o azar de não o ter conhecido há muito mais tempo. Era um homem maior do que o corpo que habitava (e não era nada pobre em corpo, diga-se de passagem) e morreu cedo. Teve a sageza de privilegiar sempre na sua vida a generosidade e o acto de distribuir o que fosse com as mãos abertas em flor. Era uma espécie de líder tribal que conseguia congregar à sua volta novos e velhos, família e amigos, conhecidos e desconhecidos com uma autoridade natural que decorria de uma espécie de budismo heterodoxo, súmula escolhida a dedo daquilo que a vida lhe tinha posto diante em cada momento. Actor portentoso, talvez a Comunidade do Pacheco tenha sido o texto que mais prazer lhe deu levar a cena. Não por acaso: se há uma palavra que o Cândido abraçaria com aqueles braços capazes de envolver o mundo e o levar ao peito seria essa mesmo. Comunidade.»

Natacha Cardoso/Global Imagens
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O Leme Secreto

Luís Carmelo, no Hoje Macau (13 Maio 2021)

«Seis décadas depois, conheceste em Amesterdão um artista polaco chamado Henryk Gajewsky que te convidou a participar num projecto intitulado “networking”. A ideia baseava-se numa gravação em cassete que rodava entre as moradas de vários artistas. Cada um gravava o que achava por bem – voz, leituras, sons de paisagens, misturas, ecos, palavras, narrativas curtas, devaneios, etc. – e enviava ao seguinte que constava da lista. O trajecto, sempre inacabado, viria depois a ser exposto com apoio de material visual (lembras-te de um violoncelo em que o arco tinha luz e de uma miscelânea final que faria lembrar um desengonçado concerto da Meredith Monk).
No caso do cadáver esquisito, o diagnóstico situava os males da modernidade (imposição de alto controlo a partir das máquinas, da violência, da velocidade e das linguagens técnicas) e virava-se contra eles ao jeito fugidio de todas as vanguardas da época. No caso do networking de Gajewsky, a acção enfatizava bem mais a ininterrupta interacção em rede e menos os efeitos da linguagem, entendidos como arma fosse contra o que fosse. O resultado era e foi, neste último caso, uma surpresa sem carga de manifesto, mas tão-só de júbilo estético. E isto apesar de Gajewsky ser, na altura, estávamos nos derradeiros anos da guerra fria, um exilado político.
Os dois casos aqui evocados ilustram dois modos de nomadismo que marcaram o século XX. Um primeiro instrumental e contestatário e um segundo essencialmente paródico (e capaz de assimilar e de truncar tudo o que as vanguardas haviam produzido até ao final dos anos setenta). A identidade do século XX como que avançou de múltiplas resistências a poderes muito claros (violentíssimos e verticais) para a era do paradoxo – que chega até aos dias de hoje – em que os poderes se diluem e avolumam, organizando-se também eles em rede.»

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Nada está perdido: Terceiro acto – Cena 2

Peça em três actos de Gonçalo Waddington, a acontecer semanalmente no Hoje Macau (13 Maio 2021)

«Uma cena por semana: escrevo, esqueço-me, regresso, continuo…»

«Gonçalo continua absorto na sua nuvem de fumo, há qualquer coisa de mágico na forma como o fumo se espalha pela divisão, iluminado pelo luar que vem da janela. Os pássaros nocturnos vão picando o ponto na noite silenciosa que se adivinha lá fora. Ouve-se uma descarga do autoclismo, depois água a correr do lavatório. A porta do fundo abre-se, Valério entra, volta a fechá-la atrás de si e aproxima-se da mesa. Abre o frasco de tremoços e trá-lo consigo de volta ao seu lugar.»

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Não sermos o que fazemos

Nuno Miguel Guedes, no Hoje Macau (12 Maio 2021)

«Como é que vim aqui parar, então? Não sei, ou melhor, suspeito. Mas este frenesim quase renascentista ainda é mal compreendido pela maior parte das pessoas. Percebo: estamos habituados a rótulos que nos apaziguam, a pistas e a uma estranha lógica que me parece perversa e que poderia ser traduzida pelo postulado “diz-me o que fazes, dir-te-ei quem és”. E quando se faz muitas coisas quem aparentamos que somos é incompreensível para quase toda a gente.
Há pouco tempo um amigo contou-me uma história divertida mas que é exemplar a este respeito. Numa promoção televisiva para apresentação de um júri que iria presidir às escolhas de uma famosa gala da estação, apareciam as fotos dos ilustres jurados acompanhadas de uma legenda: fulano de tal, cantor; fulana de tal, actriz e assim por diante. Acontece que um dos elementos do júri era Vasco Graça Moura – poeta, escritor, político, tradutor, gestor, letrista…enfim, muitas coisas. O responsável da legenda, perante esta dificuldade, não hesitou e saiu-se com esta hilariante amenidade: “Vasco Graça Moura, intelectual de múltiplos talentos”.
Esta ontologia da profissão – és o que fazes, mais uma vez – é limitadora e para mim contrária à ideia de liberdade que possuo e persigo. A vida não é planeada e à medida que nela avançamos as surpresas e descobertas são ainda mais gratificantes. Já aqui escrevi uma vez que o diletantismo é seriamente subestimado. O diletante é o verdadeiro amador, o que ama aquilo em que está empenhado em amar. Que isso confunda os outros é apenas reflexo de uma cultura em que a especialização parece ser o garante de responsabilidade. Não é.»

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Apagar a Bedeteca de Lisboa

João Paulo Cotrim, no Hoje Macau (12 Maio 2021)

«Nunca mais voltei ao Palácio do Contador-mor. De vez em quando chegavam-me notícias dos Olivais. Não me lembro de uma boa, mas a minha memória tem vontade própria. Ou tinham tornado as salas de exposição em armazém, uma necessidade imperiosa. Ou tentavam encerrá-la, incendiando a indignação do Ruben de Carvalho, na Assembleia Municipal. Ou desatavam a distribuir os originais em depósito como se aí viessem os bárbaros. Afinal, os bárbaros estavam bem instalados. Nem decidiam nem saíam de baixo. Tanto que entregaram às autoridades sem esboço de resistência livros atentatórios da moral e dos bons costumes. Uma chamada do José Marmeleira desinquietou-me: a moribunda Bedeteca cumpria por estes dias 25 anos e o Público queria saber das razões para o «desaparecimento»
Pensei em pegar em cartaz, newsletter, exposição ou livro e discorrer em direcção ao pôr-do-sol. Pensei em divertir-me desafiando em duelo pequenos e médios funcionários da vida e outros arrotadores de postas de pescada. Pensei em reflectir a fundo sobre a ausência de estratégia cultural em gestão autárquica feita ao sabor de modas. Andando por estes dias a lidar outros fantasmas, por causa de uma ilusão chamada futuro, desapeteceu-me. Mas a conversa perturbou-me a ponto de me fazer espreitar umas fotos e reler uns textos. Hesito em deixar aqui a introdução ao longo relatório que entreguei ou pedaços da carta de despedida, entre recordar o entusiamo dos objectivos ou a emoção do corte com projecto bastamente identitário. Por causa das pessoas, deixo a carta, quase por inteiro.»

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Um Homem Difícil

Paulo José Miranda, no Hoje Macau (11 Maio 2021)

«De modo geral, é o biografado que nos leva a ler a biografia e não o biógrafo. E assim também aconteceu neste caso. Gosto muito de ver Mitchum no ecrã, desde que vi pela primeira vez aos 17 anos o filme «The Night of The Hunter».
O que esta nova biografia traz de novo não são factos, mas as reflexões do seu biógrafo, que casam na perfeição com a vida e a carreira de Mitchum. São por demais conhecidas as piadas do actor Robert Mitchum. Relembro aqui quatro, que já conhecia do livro de Server e que McCormack também cita na sua biografia. A primeira, nos anos 50:
«Ir para a escola para aprender a ser actor é como ir para escola para aprender a ser alto.» Segunda, em meados dos anos 80: «Hoje toda a gente faz jogging, é uma moda. Não tenho nada contra. Já tentei algumas vezes, mas entorno sempre o whisky.» Terceira, também nos anos 80: «Estou completamente em desacordo quando dizem que a marijuana vicia. Fumo marijuana todos os dias há 30 anos e não sou viciado.» Quarta, nos anos 60: «Se alguma vez representei nos meus filmes, não me dei conta disso.» Estas passagens, por si só, dizem muito acerca do homem que foi Mitchum. Um sentido de humor apurado e um modo de estar de desafio constante. McCormack diz-nos:
«Quando foi contactado para filmar, aos 25 anos, propuseram-lhe que fizesse uma operação ao nariz, ao que ele respondeu de pronto: “Muito obrigado, mas não tenho quaisquer problemas com o nariz, respiro perfeitamente.” E desde cedo ficou claro para a indústria do cinema que Robert Mitchum não seria nunca um produto. Ou se adaptavam a ele, ou teriam de o deixar ir embora. Adaptaram-se. Pelo menos, adaptaram-se o que puderam.»»

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Nada está perdido: Terceiro acto – Cena 1

Peça em três actos de Gonçalo Waddington, a acontecer semanalmente no Hoje Macau (6 Maio 2021)

«Uma cena por semana: escrevo, esqueço-me, regresso, continuo…»

«Gonçalo escreve à máquina, sentado na mesinha em frente à janela. Tem uma garrafa de vinho aberta e o candeeiro a petróleo aceso. A janela aberta por onde entra o luar e uma brisa nocturna. Gonçalo escreve com intensidade, a percussão das teclas é impiedosa. Batem à porta e Gonçalo assusta-se, como se acordasse de um pesadelo. Abre a porta a medo. É Valério, sorridente. Traz um saco de compras cheio e uma garrafa de vinho na mão. Ele avança para a mesinha, pousa a garrafa de vinho e tira mais quatro garrafas iguais do saco, para além de três pacotes de frutos secos, dois de batatas fritas e um grande frasco de tremoços. Valério repara no montinho de folhas dactilografadas, ao lado da máquina, e passa-lhes o polegar, avaliando a quantidade de texto produzida. Olha para Gonçalo e aquiesce com um trejeito de boca. Aponta para o montinho, como se perguntasse: “posso?” e Gonçalo aquiesce, também com um trejeitozito, como se respondesse “por quem sois!” Valério fecha a janela, pega no montinho e trá-lo até à sua cadeira de madeira onde se senta a ler. Gonçalo vai até à lareira, pega em duas pinhas e pousa-as lá dentro. Depois cobre-as com bastante caruma e acende-as. O lume leva o seu tempo a aparecer. Depois põe dois toros por cima do lume, não deixando que este se apague. Quando lhe parece que tudo corre pelo melhor, volta à mesa para abrir uma das garrafas de vinho. Pega no saca-rolhas…)

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Conjecturar vidas nos retratos

Luís Carmelo, no Hoje Macau (6 Maio 2021)

«Contar uma vida através dum retrato é uma caminhada entre a imagem e o poder da conjectura. Peirce reviu no conceito de abduction todo o imenso poder da conjectura. Para o autor, a conjectura é uma actividade humana da thirdness, o que significa que antecipa, prevê, constrói e projecta para o futuro a partir do que lhe é dado (e é, também, uma categoria que, como o autor sublinhou, está ligada ao “interpretante”, ou seja, encontra-se directamente conectada com o processar ilimitado das imagens que constituem, em cada instante, a encenação da consciência).
O poder de conjecturar não é apenas um poder de antecipação, ele é igualmente um poder de natureza poética, pois está ao seu alcance conceber o que antes nunca foi criado. Este lado criativo da poiesis assegura a projecção de figurações originais e modelares sem tradução nas palavras. Trata-se de um misto de intuição e de previsão de algo que parece dado ou até óbvio. A conjectura é, pois, uma arte alheia à sintaxe conceptual e, por isso mesmo, capaz de trabalhar com hipóteses mais idealizadas do que racionalizadas. »

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O silêncio de Deus

Nuno Miguel Guedes no Hoje Macau (5 Maio 2021)

«No entanto, e como aconteceu a muita gente, não sou exactamente quem queria ser. Ou o que queria fazer. O leitor conhece a pergunta porque ainda está a ecoar na sua memória: “O que queres ser quando fores grande?”, perguntaram-nos tantas vezes nessa altura em que mal conseguíamos sustentar a nossa personalidade titubeante. E nós respondíamos, encostados aos nossos ídolos do momento ou às profissões que julgávamos mais aventureiras.
Pela minha parte, a escolha é sortida e foi evoluindo com a idade: piloto de Spitfire pela Royal Air Force em 1940 (sim, eu sei, não digam nada, obrigado), detective privado como o Philip Marlowe, vocalista de banda rock, realizador de cinema, diplomata, jornalista (esta lá consegui), escritor, dandy diletante (esta também, mais ou menos).
Mas reparava que muitos dos meus amigos tinham um fascínio comum: queriam todos ser astronautas. O como e o porquê não interessavam: apenas viajar pelo espaço. Tinha cinco anos quando vi a chegada do homem à Lua e também eu fiquei siderado por aquela extraordinária conquista. Mas não me chegava.
Até que há poucos anos descobri que também gostaria de ser astronauta. Corrijo: um astronauta chamado Michael Collins. »

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Estremece o vento. Sobe a manhã. O calor abre.

João Paulo Cotrim no Hoje Macau (5 Maio 2021)

«Podia bem ter ido apenas pelo lugar, melhor, pelo encontro ali que há muito se adiava, mas havia razão prática: a capa para a «Ode Marítimu», versão em cabo-verdiano da brutal engenharia e celebração dos mares e portos em nós segundo Álvaro & Pessoa, ilimitado (algures na página). E no processo desencadeado me reconcilio com o papel do editor. Ignorante do seu lado cabo-verdiano, acabei despertando um entusiasmo que já partiu nas mais diversas direcções, dando nó na rosa dos ventos. Está a acontecer o reencontro do Francisco com uma das suas línguas. Partiu do texto agora reescrito pelo José Luiz [Tavares] para uma narrativa gráfica que mastiga as paisagens daquelas ilhas por junto a de uma cidade mulata. (Pode ainda dizer-te mulata sem despertar os ogres da correcção automática?) Foi-me dado ainda ver partes do processo, o modo como a feitiçaria faz a ligação entre o concreto do mundo com a prática do desenho. A pintura redefine assim os dias, nada se se pôr à parte. Por aqui não nascem museus.
Na pressa vertiginosa habitual, estava a receber as últimas correcções do poetradutor, que insistia, a cada uma, em explicar-me as razões e as raízes, quês e porquês. Exemplo seja a importância do «n», onde se esconde o eu daquela língua, ainda para mais em sonoridade escorregadia que pede ginástica da língua-orgão, para que possa acontecer a língua-sentido. O José Luiz, não sei se o disse já a propósito de Camões, vai conduzindo a nova língua para mares infindos e abissais. Contra tudo e alguns, os que insistem pouco inocentemente em chamar-lhe crioulo. «Como quase vítima de glotofagia, usuário e estudioso», diz ele, «sei bem o que está subjacente à designação ainda que se não tenha a consciência: O crioulo de Cabo Verde, língua natural dos cabo-verdianos nascidos em Cabo Verde e língua de herança de parte da grande diáspora designa-se cabo-verdiano ou língua cabo-verdiana. Crioulos todos são, como a língua românica de Portugal é um crioulo do latim. Crioulo de Cabo Verde, designa apenas uma família de língua, assim como a língua românica de Portugal também indica uma família de língua.”»

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