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Situacionismo

João Paulo Cotrim, no Hoje Macau (23 Junho 2021)

«Horta Seca, Lisboa, sexta, 11 Junho

Há uns meses foi o telemóvel que resolveu armar-se em situacionista e mandar nas minhas conversas, desatando a fazer chamadas em direcções indesejadas. Deu conversas longas e divertidas e uma delas foi com o António Torrado, que agora parte para parte incerta. A costumeira ignorância arrumou-o na gaveta de escritor para putos, coisa das mais menores, algures entre o conto e a poesia, uma necessidade por causa da didáctica e para entreter e por isso agora em atenta vigilância. Também teve pé em palco, mas isso pouco muda. Ora o António, que foi editor, era escritor a merecer outras sortes, as da leitura, nos mínimos. Se nele entrarmos pelo lado do absurdo logo a viagem se faz compensadora. Mas não, dá menos trabalho e alinhar na celebração pacóvia do que nos chega mastigado do que procurar raízes na terra comum. Uns dias antes, também nos havia deixado a Leonor Riscado, que gastou a vida precisamente na valorização desta disciplina luminosa e obscura. Não consigo deixar de procurar na minha cabeça em incessante crash uma palavra, uma única trocada com cada um e que gostasse que fosse, para sempre, a sua e de mais ninguém. Há palavras que procuram as pessoas certas onde morar.

Livraria Verney, Oeiras, Sábado, 19 Junho

Tem acontecido neste espaço, sob a minha desatenção, uma curiosa troca de olhares. Tendo em depósito a obra de Neves e Sousa, primeiro o Nuno [Saraiva], e neste momento a Catarina Sobral trataram de a ilustrar, ilustrar o desenho, outro modo de o comentar, de o ler, de o tornar seu. A tinta-da-china ganhou cores e o registo rápido de viajante atento ganhou sequência quase narrativa: se um grupo se junta em torno do fotógrafo em Neves e Sousa, a Catarina faz-nos a ver a fotografia possível. O que era transparência nos traços de um passou a expressividade no desenho de outra. Os corpos que se queriam reais passaram a ser formas de um vocabulário pessoal. E o essencial dá-se nesta maravilhosa deslocação dos corpos nas paisagens. E se no preto e branco só a podemos adivinhar, nas massas de cor apresenta-se em todo o seu esplendor, sua excelência, a luxúria. Fico preso a um mangal (na página), veios e folhagens sopradas pelo vento, lugar de híbridos e cruzamentos de estados, onde a terra se faz líquida e o vegetal toca as nuvens. Oculto nas folhagens está o observador indistinto do horizonte, animal que respira e vê.

Livraria Verney, Oeiras, Sábado, 19 Junho

Ainda nos reunimos sob o signo do medo. Coreografamos os primeiros momentos com a dança da hesitação, não sei se mão se cotovelo, se abraço ou aceno. Afasto por instantes a máscara para que me reconheçam ou continuo oculto e falante? Perceberão que estou sério ou sorridente? Se as comissuras falassem… O Luís [Cardoso] invoca os bons espíritos e com eles se dará a sessão de lançamento d’ «O plantador de abóboras», por acaso já bastante lido e comentado. Ana Paula Tavares faz justíssimo enquadramento, a corada Ana [Jacinto Nunes] não se cansa de elogiar as mulheres, personagens da verdade, e a Natália Luiza trará em voz alta a toada desta «sonata para uma neblina».

E o Luís fala como se cantasse e cantou de igual modo, a embrulhar a complexidade de cada gesto no pano da simplicidade. Um pouco como tem dito a cada entrevista: esta história foi-lhe entregue em herança por mulher perdida nas memórias esfumadas de Timor, mas o romance vai muito além dessas montanhas; que queria compor um longo poema de amor, que bem se espraia naquelas páginas, mas não se resume a isso, não sendo pouco. A ternura com que talha as personagens, gente e planta, animal e paisagem; o modo de contar como quem toca, não esconde assuntos como as malhas do Império, a identificação de um país ou essa inescapável desilusão. (Aqui para nós, que nos ninguém nos lê, emociona-me que inclua Sancho Pança nessa galeria de figuras, pois encontro nela muito do que pode ser um editor). Confirmo, a partir de pistas que já vinha recolhendo, em sala que não pode estar mais cheia por causa do vírus do tempo, que o Luís soube construir uma comunidade de leitores, feita sobretudo de mulheres. Sinto-me privilegiado por dela fazer parte.»

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A morte de um apicultor – parte 3

Paulo José Miranda no Hoje Macau (26 Junho 2021)

«De qualquer modo, um casamento acaba sempre por encontrar as suas próprias leis. Veja-se como o narrador descreve o seu: «Saber mais do que os outros era uma maneira de ficarmos ligados um ao outro. // E nós estávamos ligados: sem sentimentalismo, sem grande sensualidade, mas de um modo confortável. Sentíamo-nos como dois solitários que se tinham encontrado e que, por causa dessa solidão, tinham algo em comum e deixavam de ser solitários. Mantermo-nos juntos, a Margareth e eu, era uma forma de dizer.» (63) Outro modo substancial de nos pôr a ver o mundo como usualmente não vemos prende-se com a aquilo que escreve acerca das abelhas. Leia-se: «A morte de um enxame sente-se quase como a morte de um animal. É uma entidade que deixará saudades, como se fosse um cão, ou, pelo menos, um gato. // Mas a morte de uma abelha deixa-nos completamente indiferentes. Deitamo-la no lixo, e já está.» (19)

Esta passagem é absolutamente estonteante. Gustaffson mostra-nos aqui duas coisas extraordinárias e distintas. Primeiro, não é que nas abelhas o colectivo é que importa e não o individual, mas como isso nos faz pensar imediatamente no ser humano. Ele não fala do humano, mas obriga-nos a pensar nele, ao descrever tão clara e categoricamente a distinção entre colectivo e individual, entre enxame e abelha. Aliás, mais tarde, no segundo capítulo, escreverá: «(“A mim próprio”, “eu próprio”: hoje em dia. Acho esta expressão absurda. Não tem conteúdo.

Mas não consigo explicar bem.)» Este não consigo explicar é fundamental ao longo do livro. Nós não conseguimos explicar bem as coisas, não só aquilo que está fora de nós, mas também aquilo que está em nós. Por conseguinte, por que carga de água um romance teria de ser capaz de explicar? O que melhor pode fazer é mostrar, no sentido de Wittgenstein, na célebre distinção entre mostrar e dizer. Escreve o filósofo que nós podemos dizer aquilo que pode ser explicado, aquilo que pode ser colocado em uma proposição lógica. O que não pode ser colocado em uma proposição lógica deve ser mantido calado, em silêncio. Ou então, mostrar. Mostrar é a função da arte. Através da arte podemos mostrar o que nos acontece, mas através da lógica, não. Seja como for, naquela distinção entre enxame e abelha e mais tarde a incompreensão do «eu próprio», Gustaffson faz-nos pensar em tudo isto. Em tudo isto e muito mais que não consigo explicar bem.»

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Pensar a vida

Valério Romão no Hoje Macau (18 Junho 2021)

«E a vida dos bairros da cidade pode ser mais ou menos a mesma anos a fio. Duas pastelarias razoáveis – uma com o café mais barato do que na outra mas mal servida de bolos –, uma funerária onde amolece amarelada, na montra, uma Nossa Senhora sem protector solar, uma loja de fotografias involuntariamente transformada em museu-galeria do bairro, por onde as pessoas passam, apontando: «olha, que é feito desta?», uma lavandaria onde a mitralhada da rua vai beber café na máquina de venda automática – porque é mais barato – e na qual a turistada vem lavar e secar a roupa, tasquinhas de bêbedos intemporais, tasquinhas de carapauzinhos fritos com arroz de tomate, tasquinhas de bola, minis e tremoços com balcões altos onde a dona, nos dias de mais algazarra, se pendura, furibunda, alçando-se naquela voz de atrair morcegos, de tão aguda: «mas vocês pensam que estão em casa???»

Estes bairros correspondem a ciclos de vida na cidade. E estes ciclos existem desde sempre (ou, pelo menos, desde que há cidades e desde que há bairros). As pessoas nascem e morrem, os negócios aparecem e desaparecem consoante as necessidades das pessoas e os avanços tecnológicos, as fachadas vão levando umas obras a ver se a coisa se segura, o recheio das casas vai mudando. É todo um ecossistema urbano no qual as pessoas modificam e são modificadas por aquilo que os rodeia.

Esse ecossistema, em grande parte de lisboa histórica, estava em claro declínio. Nalguns casos, estava mesmo moribundo. A casualidade de termos sido descobertos como destino turístico bom e barato revitalizou grande parte desses bairros, embora o tenha feito ao modo da erva daninha, reclamando espaço apenas para si e sufocando o que crescia, a custo, a seu redor. Os edifícios cai-não-cai já não caem; pelo contrário, têm bom aspecto. Mas são enclaves de turistas onde os moradores só entram, no máximo, para limpar e fazer camas. Nada do que foi recuperado na cidade o foi pensando nas pessoas que nela habitam. Estas são, no limite, figurantes com interesse zoológico, adereços para esconder o plástico que vai corroendo e substituindo, todos os dias um pouco mais, a vida.»

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I am a cowboy

Luís Carmelo no Hoje Macau (17 Junho 2021)

«Por vezes interrogo-me sobre o papel da violência que atravessa os westerns. Ela faz parte íntima do género, mas, apesar da sua predominância, nada a torna mais implacável do que a que grassa no quotidiano da nossa actual experiência da imagem.

A violência do western desenvolve-se num tipo de lógica de “gag” porque corresponde quase sempre a lances ficcionais que desarrumam uma certa expectativa de normalidade. Tudo nessa violência tende para o exagero, ou seja, para a hipérbole. Até o modo desabrido com que as vítimas dos sucessivos tiroteios voam ao caírem por terra espelha bem o espírito pioneiro do “wrestling”.

A violência que perpassa nos terminais de imagem do nosso tempo – que já interiorizámos e a que já nos habituámos – é dominada por um apelo muito mais cru, directo e cruel, pois tende a colar-se ao horizonte do que consideramos ser a normalidade (ver os rockets no médio-oriente ou ver uma série em que uma cidade inteira explode é, hoje e dia, digerido no sofá como se fosse quase a mesma coisa).

Existe uma segunda característica da violência dos westerns que a torna relativamente inocente. Trata-se do formato – ou do jogo – que a prefigura e cujo contexto distingue, de um lado, um domínio selvagem (onde se insere a paisagem por domesticar, assim como os índios autóctones que a habitam e a alma bravia dos vilões que a fustigam e exploram) e, do outro lado, um domínio da lei (onde se inserem os heróis solitários na representação de uma idealidade ou então os “sherifs” na representação de uma ideia de estado). Esta oposição de base é sempre vivida em pequenas localidades de desenho efémero, todas com seu o “saloon” enquanto ponto de encontro entre uma relativa estabilidade e a iminência dos forasteiros desordeiros que a virão pôr em causa.

Na maior parte das séries que hoje visionamos nos canais de “streaming” ou na tv clássica, a violência surge, ao invés, fora de qualquer contexto (ou de qualquer jogo narrativo pré-definido) e, por isso, dá à carne e ao sangue um tipo de verossimilhança muitíssimo distinta, porque tendencialmente hiper-real e dissociada de uma clara empatia de jogo.

A violência dos westerns tem muito que ver com a violência algo gratuita que se lê nas páginas da Ilíada e que, neste último caso, chega a cansar (tantos são os combates corpo a corpo que por vezes se diluem na recorrência retórica). O que une ambos os registos é a necessidade de vincar a origem duma história e o seu fulcro inevitavelmente heróico.»

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Capitão da vida

Nuno Miguel Guedes no Hoje Macau (16 Junho 2021)

«Simon Skjaer aproximou-se do companheiro Christian Eriksen, reconheceu a situação e agiu, a única forma de existir naquele momento. Protegeu o pescoço do jogador caído, colocando-o de lado e abrindo a sua boca de forma a libertar as vias respiratórias caso viesse a sofrer de convulsões. Passaram 23 segundos até que a equipa médica da selecção adversária, mais próxima do acidente, pudesse chegar e tomar conta da situação. Vinte. E. Três. Segundos.

«Que tempo é este que não é o meu, que não é o de Christian, que não é o da sua namorada Sabrina que vejo daqui em lágrimas? Que segundos eternos me oferecem a mim, a nós, ao meu amigo a um segundo de distância de todos os segundos finais ? De que nos vale?», não terá pensado Simon Skjaer.

Com os médicos já a prestarem a assistência necessária, o capitão teve tempo para fazer o ainda mais belo: ordenar uma cortina humana de pudor. Porque a vida não pode ser escancarada mesmo quando existe a possibilidade iminente de chegar ao fim. Em lágrimas, os companheiros obedeceram.

O resto sabemos. O resto ganhámos. O capitão mostrou-nos como podemos enfrentar a brisa que é a nossa vida. Nenhum 12 de Junho será igual a um 12 de Junho. Assim nos preparemos.»

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É assim!

João Paulo Cotrim no Hoje Macau (16 Junho 2021)

«Horta Seca, Lisboa, quinta, 3 Julho

A gentileza do Andrea [Ragusa] da Valeria [Tocco] não impediu que me sentisse corpo estranho na evocação dos 150 anos das Conferências do Casino, «Uma aurora à qual não se seguiu dia», distribuída por dois ciclos, este agora e aquele que se seguirá em Outubro. Os convidados são ilustríssimos cultores das Letras, especialistas em Antero e outros visionários, apresentando-se este vosso criado na qualidade híbrida de personagem de banda desenhada e leitor difuso. Com as devidas distâncias e dissemelhanças, um pouco à maneira de Rafael Bordalo Pinheiro, que se fez convidado para aquele plural a que não pertencia até o ter desenhado: «nós tivemos uma visão redentora e de endereita» (assim com ligeiríssimo erro). Falo da extraordinária 7.ª Página «d’um Album humorístico, ao correr do lápis», extraordinário todo ele, momento fundador da narrativa gráfica nacional, logo nas primeiras entregas e com extrema inventividade. O jovem comentador começa como que exclamando no modo de hoje, irritante por se querer definitivo: É assim! Isto é, dá-se logo a dizer, pois desenha-se de punhos na mesa, enfrentando o leitor com um Senhores: a que se segue na linha do desenho dois pontos. Adiante colocará cena entre parêntesis e tratará de pôr, em imagem indelével, um historiador crítico a arrastar gigantescos pontos de interrogação e exclamação, objectos pesados e ao mesmo tempo sustentados no ar. Para o jovem artista, em 1870, a narrativa gráfica era óbvia continuação do texto e o seu comentário, entre o professoral e o humorístico, fixou como poucos o momento das Conferências Democráticas, as que, mesmo interrompidas, não mais deixariam de nos atormentar com o retrato da «purulenta e burguesa physionomia do paiz». Questões volúveis e pesadas. Com as devidas distâncias e dissemelhanças, ainda nos podemos rever nas avaliações daqueles oftalmologistas da civilização que se propunham, apesar da ordem, curar a cegueira com a liberdade. Foi com prazer que regressei a tais páginas e momentos, que estão disponíveis em edições da Biblioteca Nacional. Ao subir para est’A Berlinda, Rafael dava enorme impulso à sua viagem vertiginosa de performer (avant la lettre) definindo programa, temas, estilo e personagens, grupo variado em cujo centro brilhará sempre ele mesmo, em auto-retrato de corpo inteiro. Senhores: jogando-se.»

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A morte de um apicultor – parte 2

Paulo José Miranda, no Hoje Macau (15 Junho 2021)

«A esperança não tem como horizonte de sentido um futuro melhor, mas um presente alargado ou um passado alargado. A esperança é acima de tudo a expressão de uma vontade de que as coisas voltem ao normal. E voltar não é para a frente, é para trás. Quando alguém diz «tenho esperança que a minha mãe melhore» mais do que reportar-se a um futuro, está a reportar-se a um passado, a um tempo em que as coisas eram normais, a um tempo em que não havia doença. Parece haver uma ideia de futuro, mas na verdade é uma esperança de que tudo volte a ser como era.

No fundo, a esperança é um mecanismo que transforma um adulto em criança. O medo da criança não é o medo do adulto. O medo da criança, a mais das vezes é imaginário; o medo dos adultos é concreto, enraizado em factos. A esperança ao transformar o adulto em criança, altera-lhe também os medos. Um cancro já não é mais um conjunto de tecidos a degradar-se a matar-nos por dentro, passa a ser uma coisa desconhecida que assim como apareceu, pode desaparecer. Escrever um livro pode fazer desaparecer essa coisa desconhecida, Deus pode fazer desaparecer essa coisa desconhecida. O desconhecido, para desaparecer, só precisa de imaginação. Repare-se como quase no final do livro Gustaffson define o humano como um ser que balança entre a animalidade e a esperança. (168) Não é entre a animalidade e o espírito, porque espírito não sabemos bem o que é. É entre a animalidade e a esperança. Ou, se preferirem, entre a animalidade e o anseio de transformação do tempo. Aliás, não podemos esquecer a última frase do livro: «Podemos sempre esperar.»

E de que modo é que podemos analisar o estribilho que percorre todo o livro: «Recomeçamos, não nos rendemos.» De outro modo, podemos ligar este refrão à esperança ou há algum modo em que se ligue este refrão e a esperança? Não se liga. Ou, pelo menos, não se liga de imediato, sem que antes mostremos os outros centros gravíticos desta obra.

E um desses centros gravíticos, que melhor nos pode iluminar o refrão do livro, é precisamente aquilo a que podemos chamar «a máquina de fazer perguntas inusitadas». Gustafssonn mostra-nos que escrever é, acima de tudo, arriscar o pensar. Pôr o pensamento em risco, ir além daquilo que pode ser feito em filosofia ou em ensaio.»

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O segredo do cool

Valério Romão no Hoje Macau (11 Julho 2021)

«As redes sociais vieram redefinir essa noção de ícone que, há apenas duas décadas, pertencia quase exclusivamente à indústria do entretenimento. «Cool» era ser parecido com uma estrela de cinema ou da música, vestir-se como eles, fumar como eles, viver no limite do perigo e com um pé na decadência, se possível, como eles. «Cool» era uma daquelas propriedades subtis, difíceis de precisar de um ponto vista objectivo mas absolutamente evidentes ao contacto. «Cool» era qualquer coisa que os outros tinham e que nós, o resto, se esforçava por copiar ou a passar a vida fingindo não se lhe dar qualquer importância. «Cool» tinha um rosto. Melhor: tinha alguns rostos. Era uma espécie de caleidoscópio que o tempo girava para, como na frase do romance de Tomaso di Lampedusa: «tudo mudar para tudo ficar como estava».

Como muita coisa desde o advento da Internet e das redes sociais, o «cool» democratizou-se. Deixou de pertencer com exclusividade aos actores e cantores deste mundo (apesar do finca-pé que estes fazem na tentativa de segurar o manto do rei que se afastando) e começou a aparecer um pouco por toda a parte. Os «influencers», palavra que me custa tanto a dizer como a grafar tornaram-se um porta-estandarte do «cool» contemporâneo. Através das suas publicações, sobretudo no Instagram, cativam a atenção de milhões de pessoas que, embasbacadas em frente aos ecrãs dos seus telemóveis, sonham com passar férias onde aquela foto foi tirada, sonham com ter aqueles lábios, aquelas sobrancelhas (um dos maiores e para mim mais incompreensíveis fenómenos do «cool» dos últimos anos: a estética da sobrancelha), aquele corpo. «Cool» é, em grande parte, sonhar. Sonhar com poder, com a forma de poder mais imediata que existe, que é aquela que radica na beleza: o poder que se tem só por se aparecer. Ser «cool» é ganhar mesmo antes de o jogo começar, apenas por comparência.»

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